Neste
conto o nome da cidade onde a trama se desenrola é Penápolis. É que Penápolis
vem de pena (creio eu); e pena é bom pra fazer "cosquinha" na barriga da gente,
porque rir é bom demais. E a risada frouxa da "cosquinha" é a melhor do mundo
porque é uma risada arrancada de espontâneo.
No
bairro do Pó-de-Mico, em Penápolis, vive Maria Felicitá, que se ri de cócegas,
de tombo alheio, de gente que escorrega na casca de banana, de gente
peidorreira, de mico-leão dourado que vive na eminência do "acabou-se o que era doce”, de tudo a moça se acaba de tanto rir.
Maria
é só alegria. Em velório, ela costuma rir com vontade; mas é uma vontade cheia
de responsabilidade: ela não ri do defunto não; isto é que não. Maria tem medo de
assombração. Só ri das situações estereotipadas de velório superficial onde
ninguém nem está aí com o morto. Quando o velório é sério, Maria fica séria
também.
Ocorre
que de um tempinho para cá Maria Felicitá vinha meio incomodada com tanta
alegria. Ela andou lendo numa revista de psiquiatria sobre transtornos
compulsivos obsessivos, bipolaridade, síndrome do pânico, depressão, ansiedade,
aracnofobia, homofobia, gatofobia, "gentefobia", todos esses transtornos que sempre
existiram e só puseram nomes recentemente.
-Gente!...
Quanta gente transtornada! – disse transtornada com tanto transtorno a alegre
Maria para si mesma.
E
agora Maria se pôs ressabiada achando que é anormal. Pior: enfiou na cabeça que
sofre de “exclusão social transtornante”,
isso lá na maneira de pensar dela.
Num
domingo bem cedinho lá foi Maria na banca do Zé Debochado comprar o novo número
da tal revista que fala de psiquiatria e de todos esses assuntos do mundo dos
miolos. E tinha reportagem falando de uma famosíssima psiquiatra, a doutora Zigmunda
Fróida, que é especialista em desenvolver todo tipo de transtorno já nomeado e
até transtorno que ninguém nem botou nome ainda. Mas ela era perita em "desmiolices" e batizou tudo quanto foi transtorno pagão.
-Dois
mil reais custa uma consulta com a dona Fróida?! – fez Maria Felicitá toda
espantada.
Mas
Maria não podia esperar não. Juntou uma televisão de led, um microsystem, um
micro-ondas, uma secretária eletrônica, um mico-leão dourado e um I-Pod G8 Três
Vírgula Quatro Polegadas e Meia. E tudo ela vendeu para o muambeiro Tião
Sorriso por mil e oitocentos reais. Tião Sorriso é muito esperto. E Maria muito
besta.
-Não
tenho medo de pechinchar não – falou Maria para as paredes. –Dona Fróida vai me
dar um desconto que eu sei; ninguém não é bobo para dispensar bufunfa assim.
E
lá se foi Maria atrás da doutora Zigmunda.
Na
recepção da psiquiatra, Maria sentou-se numa poltrona imitando um sapato de
salto alto. Ela gostou muito. E reparou num quadro na parede à sua frente.
-Santo
deus!... O que será aquele rabisco comprido que tem um pé tão grande?!... E
ainda por cima tem um pé só – pensou Maria toda curiosa. –Saci não é não porque
não tem gorro vermelho nem cachimbo na boca, concluiu nos alegres miolinhos sem transtornos.
Maria
só tinha aprendido a rir de tudo. Nunca falaram do Abaporu para ela. E o
retrato era mesmo o Abaporu da Tarsila do Amaral, que foi casada com o Oswald
de Andrade, mas o casamento nem deu muito certo.
Nisso
a secretária da doutora Fróida, a Zefinha Rabugenta, mandou Maria entrar na
sala da psiquiatra porque era a vez dela. E Zigmunda não podia perder tempo.
-Acha!...
Tempo é dinheiro!... Ninguém não tem tempo para perder com gente alegrinha assim! – disse Zefinha toda desacreditada com a alegria de Maria.
E
lá foi Maria, "de alegrinha", ter com a grandessíssima entendedora de cabeças.
-Entre,
darling – fez a doutora. –Deita no
divã e vai logo desembuchando o que é que você tem, meu bem!
Maria
obedeceu rapidamente porque se lembrou da essência das palavras de Zefinha
Rabugenta: “Tempo é dinheiro e ninguém tem tempo para desperdiçar com gente
alegrinha”. Só ela, Maria, é que gostava de ser feliz.
-Não
tenho nada não, dona Fróida!
-Não?!
– espantou-se a doutora.
-Mas
vim aqui para ver se arranjo alguma coisa qualquer – emendou sem demora a moça
que padecia de felicidade.
-Hum...
Vejo que você é ajuizada, baby –
disse satisfeita a "psiquidoida".
-Mas
só tenho mil e oitocentos reais... Mais não tenho não!
-Oh,
honey! Não se preocupe... Sempre
tenho uma coisinha ou outra que cabe direitinho no bolsinho de clientinho
brasileiro. Tenho sim!
E
lá foi a doutora muito esperta na direção de uma estante repleta de tudo
quanto era transtorno mental.
-Como
é a sua primeira vez, litle girl, vamos
devagar porque devagar se vai ao longe – advertiu a médica.
E
falou isso coçando o queixo com a mão esquerda enquanto a mão direita tateava
as prateleiras das delícias transtornativas.
De
repente ela fez: -Oh!
-Encontrou,
doutora?! – perguntou Maria já toda imbuída só com a iminência de um transtorno
que lhe entristecesse a alma e a incluísse na sociedade dos transtornados.
-ESQUISIOTEPIA
TRIPOLÁRICA SORUMBÁTICA! – gritou com muita satisfação na voz a inventora de
doidices.
-Que
diabo é isso?! – quis saber Maria toda amedrontada.
-Um
transtorno que criei já vai algum tempinho; só estava esperando a pessoa certa
para ser prescrito.
-Eu que sou toda errada sirvo para ser a
pessoa certa, dona Zigmunda? – ressabiou-se Maria no fazer da pergunta.
-Oh,
of course que sim! – atestou a doctor que é da terra do "Tio Sam" e
aprendeu a falar português para escarafunchar com êxito as cacholas do Brasil.
E
veio a prescrição: um comprimido de manhã bem cedinho e um bem à noitinha,
antes dos "braços de Orfeu". E assegurou bem para Maria:
-Honeyzinha, não te preocupe com os
efeitos colaterais dos primeiros quarenta dias do tratamento, que são
alegria triplicada e sentimentos de amor exagerados.
-Ai,
meu deus!... Não corro risco de morrer com tanta felicidade, dona Fróida?!
-Que
nada, Darling!... É só no começo;
depois de quarenta dias, "vocezinha" sentirá uma tristeza e uma melancolia tão
incomensuráveis que nunca mais se lembrará da menor alegria que possa existir
nesse mundo de gente desregulada pela felicidade.
-Oh,
doutora Fróida!... Que alegria!... Não é todo dia que se encontra uma
especialista em patologias da mente.
E
Maria voltou para casa, que fica no bairro do Pó-de-Mico, toda contentinha
porque em breve seria tão "esquisiopatética" como toda aquela gente da Revista de
Psiquiatria.
Nos
primeiros vinte dias de tratamento, a moça não aguentava de tanto se rir; se
mijava toda de tanta alegria.
Com
trinta dias, Maria estava insuportavelmente felicíssima. Achou até que morreria.
“Pelo menos morro feliz”, matutou na cabeça alegrinha.
Quando
completaram os quarenta dias do tratamento, a moça, no mais alto clímax de
felicidade, já pedindo formiga em namoro, pensou: “Enfim amanhã ficarei sorumbática!”
Qual!...
Ficou nada!
Na
madrugada do quadragésimo para o quadragésimo primeiro dia, o coração de Maria
explodiu de tanta alegria; morreu com os olhinhos arregaladinhos e bem
brilhantes; a boca parecia que tinha triplicado os dentes de Maria, de tanto
que ela sorria.
A
doutora Fróida soube do acontecido e foi consultar as bases; tinha prescrito
comprimido de "cannabis sativa" para
Maria em vez de comprimido para ESQUISIOTEPIA TRIPOLÁRICA SORUMBÁTICA.
E
assim, era uma vez Maria... Que era só alegria... Que morreu de overdose de tanto
gozar de felicidade e sonhos de orgia.
Éd Brambilla. Conto. MARIA FELICITÁ
E A CONSULTA COM A DOUTORA ZIGMUNDA FRÓIDA. 17.09.2015.
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