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sexta-feira, 13 de novembro de 2015

ESQUIZOFRENICAMENTE FELIZES



Filosofando sobre a vida com um colega de van (transporte que me leva para a faculdade), depois de tantos assuntos bem interessantes, ele me perguntou:


-Você gostava do seu pai?


(...)


Depois de um breve silêncio, a resposta saiu tão nítida, tão clara e rápida, que fiquei assustado com minha própria resposta, a ponto de uma espécie de aleluia fazer o tempo transformar segundos em horas. Até agora me pergunto:


-Essa resposta foi minha ou foi de meu pai?!


Não, a resposta não foi genial, mas me tocou de uma forma que raras são as vezes que acontece de algo mergulhar no mais profundo de mim.


Minha (?) resposta:


"Meu pai foi um cara incrível... Criou nove filhos ganhando muito pouco... E o maior presente que ele me deu em vida foi nunca ter podido me dar um daqueles brinquedos da 'Estrela'..."


Já em casa, me pus a refletir:


Meu pai mal podia me comprar roupa e material escolar... Então eu tinha de fabricar os próprios brinquedos... Juntava minhas duas irmãs mais novas e os filhos dos vizinhos para imitarmos a vida dos adultos... E nesta ilusão, eu escrevia histórias e montava os cenários... E cada um interpretava um personagem... Eu escrevia, dirigia, atuava... Noutro momento, eu montava uma sala de aula e "pluft", já era um professor,,, Morria um animal de estimação e "pluft", um velório já estava montado; e eu fazia as vezes de padre e coveiro... Qualquer material servia para ser transformado em brinquedo: buchas (daquelas vegetais cujas ramas sobem onde dá para subir) verdes de todos os tamanhos viravam vacas, bois e bezerros (minha mãe não gostava muito da ideia; ela sempre se queixava que nunca encontrava os "forfes" para acender o fogo do fogão; ela não entendia que eram animais quadrúpedes; e ainda havia os chifres, ou seja, seis palitos de fósforos para cada animal; e a fazenda era grande, tinha muitos bois e vacas e bezerros)... Tinha a brincadeira da "Rama-Sama" ou o casamento de um par de bichos num momento, com direito a altar, padre e a estátua de "Nossa Senhora" para abençoar os noivos, e, noutro momento, às vezes na sequência, brincávamos de terreiro de Candomblé (que só vim a entender muito tempo depois do que se tratava). Em fila, cada um esperava a vez para ser exorcizado; eu agarrava nos cabelos de um com a mão direita e nos cabelos de outro com a mão esquerda; sacudia as cabeças das crianças para todos os lados e gritava para o "espírito-de-porco" sair de dentro dos corpos delas. E mal eu terminava de exorcizar a última das crianças possuídas, lá vinham as primeiras dizendo que estavam possuídas novamente, que queriam mais. Então vinha o coro: "mais, mais, mais..." Eu arrancava tufos de cabelos dessas crianças; e elas pediam mais.


Na brincadeira da "Rama-Sama", que citei acima, eu colocava uma das crianças sentada na cadeira-de-rodas do pai de uma delas; na sequência, eu saía ensandecido com a cadeira contornando uma enorme moita de cana-de-açúcar; após a terceira volta, enquanto eu gritava "Rama-Sama" e quem estava na cadeira berrava 'AHHHHHHHHH", mesmo, eu jogava sobre a moita de cana a cadeira com criança e tudo o mais. Não sei se eu era o mais retardado ou se eram as crianças as débeis mentais. Essas histórias foram retiradas de até os meus dez anos de idade. Depois fui ficando mais sofisticado. O fato é que éramos todas crianças criadas soltas, sem "coisas da Estrela." Nossa maior tecnologia era usar uma vela dentro de um globo de lâmpada daqueles antigos para fazer de bola de cristal. Então eu virava o "Madamo Jalusco", que lia o presente, o passado e o futuro; tinha tenda e tudo o mais, sem contar a minha caracterização: um lençol enrolado no corpo e uma toalha servindo de turbante na cabeça. Esta brincadeira, em especial, mal aconteceu uma única vez, pois, quando eu pedi para uma de minhas irmãs entrar para ser a primeira a ter o destino revelado, no que ela entrou na tenda e olhou para mim e o "globo-de-lâmpada-de-cristal", a doida se pôs a berrar como se estivesse sendo estrangulada. Eu, desesperado, acreditei que ela estivesse vendo um espírito atrás de mim. Resultado: ela saiu correndo aos berros e eu, também aos berros, atrás dela. E atrás da gente, sem entender absolutamente nada, vinham as outras crianças que esperavam por suas consultas, também ensandecidas e aos berros. Quando tudo se acalmou, ficamos horrorizados quando vimos a tenda toda comida pelo fogo; a vela incendiou o "globo", que era de plástico, e o fogo do globo incendiou o turbante que eu tinha deixado para trás, até que a tenda (pobrezinha), sem poder sair do lugar, foi comida pelas labaredas. De longe, quietos e sentados na beira de uma goiabeira, além do olhar de espanto de quem jurava que aquilo era coisa dos espíritos do além, nos resumimos a uma interjeição uníssona:


-Oh!


Só saímos do transe depois que ouvimos minha mãe gritar:


-Divalllllldoooo!!! Seu fêla da puta, eu vô ti dá uma pisa de espada-de-são-jorge!!!


E não sobrava um para contar a ocorrência dos fatos, para dizer que a culpa era dos espíritos. Corríamos para a rua; e minha mãe ficava para trás, xingando tudo o que vinha na cabeça dela enquanto jogava água na tenda mal sucedida.


Longe dos domínios de Dona Mercedes, íamos procurar mais "chifres em cabeças de cavalos". Éramos crianças (endiabradas... E eu a pior de todas). Mas quer saber?


ÉRAMOS ESQUIZOFRENICAMENTE FELIZES!



Éd Brambilla. Crônica. ESQUIZOFRENICAMENTE FELIZES. 13.11.2015.



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