
-Ele é poderoso! –
disse-lhe a amiga na ocasião.
No entanto, o
poderoso pai-de-santo andava extremamente ocupado com a demanda de trabalhos
por fazer. A solução: o pai-de-santo aceitou auxiliá-lo por telefone:
-Mizifio, “suncê” vai
comprar uma garrafa de champanha da boa, um lenço vermelho de seda da boa, um
maço de cigarros longos do bom, um frasco de perfume do bom, uma cumbuca de
barro, um pacote de pipocas e uma vela metade vermelha e metade preta...
“Suncê” vai arranjar um pouco de terra do cemitério e um pouco de água de poço
– ordenou-lhe o pai-de-santo no primeiro contato telefônico. Então lá foram
Damião e a amiga a uma loja de coisas “macumbísticas”. Damião comprou tudo por
conta do escritório, afinal o trabalho era para a salvação deste. Seu sócio
concordou e tomou conta de tudo na ausência do aspirante a “macumbeiro” para
que a empreitada fosse um sucesso.
-Pronto! Agora
precisamos da água do poço e da terra do cemitério – concluiu a amiga depois de
entrar no carro de Damião com o “kit-macumba”.
Como estavam perto do
cemitério, aproveitaram a viagem; terra conseguida. Faltava apenas a água, o
que foi muito fácil, visto que a mãe de Damião ainda usava um antigo poço
d´água.
Novo telefonema para
o pai-de-santo:
-“Suncê” vai escrever
os nomes de todos os clientes inadimplentes em pedacinhos de papel, vai colocar
tudo dentro da cumbuca de barro, vai cobrir com a terra do cemitério e misturar
tudo com a água do poço; depois “suncê” vai encontrar uma ponte que passa por cima
de uma linha de trem... Embaixo da ponte, do lado da linha do trem, “suncê” vai
estender o lenço vermelho, abrir a champanha e o frasco de perfume, acender os
cigarros e a vela preta e vermelha... Depois vai espalhar a pipoca ao redor de
tudo – instruiu o “macumbeiro”.
Damião ficou
desconfiado disso tudo, afinal sua intenção era boa. A ideia era fazer uma
“macumba” para que os clientes inadimplentes prosperassem em seus negócios, e,
assim, acertassem as suas dívidas com o escritório.
-Esses apetrechos todos
não são muito pesados para uma “macumba do bem”? – perguntou então à amiga.
-Não se preocupe,
esse pai-de-santo é muito poderoso, ele sabe o que está fazendo – respondeu
ela.
Como Damião não
entendia nada de feitiçaria, deu de ombros e continuou com a saga
“macumbérica”. Foram dois dias inteiros gastos com o “despacho”.
Mais uma orientação
do pai-de-santo: o “despacho” precisava ser realizado exatamente às seis horas
da tarde de uma sexta-feira. E mais uma vez lá foram Damião e a amiga.
Posicionaram-se embaixo de uma ponte. E, por Deus! havia uma multidão sobre a
passarela que resolveu parar para assistir ao trágico ritual. Sim, trágico!
Depois de tudo disposto sobre o lenço vermelho, conforme instrução do 'poderoso
pai-de-santo', era o momento de acender os cigarros e a vela. A amiga
encarregou-se de abrir a champanha e a entoar as cantigas para os orixás. O
tempo estava incrivelmente seco e quente até aquele momento, nem brisa soprava.
E não é que mais que de repente uma ventania se formou do nada! O vento tombou
o frasco de perfume em cima do lenço vermelho, esparramando todo o líquido
inflamável, que chegou até a chama da vela, que também havia tombado.
Santo Deus! Damião, na pressa de terminar logo tudo aquilo, colocou uns
dez cigarros de uma só vez na boca e acendeu tudo ao mesmo tempo. Olhou para a
amiga e ficou horrorizado. Ela estava com uma fisionomia muito estranha. Era
como se estivesse possuída. E estava mesmo! Desesperado, o pobre Damião cuspiu
cigarros para todos os lados, agarrou no pescoço da amiga e, sacudindo-lhe a
cabeça, pôs-se a gritar:
-Sai desse corpo,
agora, espírito zombeteiro... Eu ordeno! - E nada. Em cima da ponte, a multidão
também gritava:
-Macumbeiros...
Macumbeiros!
Damião lançou
mão do celular e ligou para o pai-de-santo em busca de socorro:
-“Suncê” vai fazer
tudo o que eu disser – ouviu do outro lado da linha; não da linha do trem,
minha gente... Do telefone.
Orientado pelo
“personal-feiticeiro”, Damião foi falando um monte de dizeres estranhos. E
parece que deu certo. A amiga foi voltando ao normal. E Damião também. O
problema é que o fogaréu havia tomado conta do despacho e já estava alcançando
o matagal que ficava à beira dos dormentes da linha do trem. A tragédia teria
sido muito menor se Damião não tivesse tido a brilhante ideia de apagar o
incêndio com a champanha da boa. Meu Deus! As Labaredas de fogo, alimentadas
com a champanha, voaram para todos os lados, inclusive em cima de Damião. E a
multidão se ria com cãibras no estômago dos patetas macumbeiros, e gritava
“Macumbeiros de araque!” sem a menor cerimônia. A prestimosa amiga então
arrancou o paletó de contador de Damião e o usou para combater o fogo. Deu
certo, graças a Deus! Saíram do local completamente resignados, frustrados e
chamuscados. “-Não olhe para trás” – dizia a amiga. Damião obedecia sem
pestanejar, não por medo do desastroso despacho, mas por conta da imensa
vergonha que tomava conta de si naquele momento. Entraram no carro sob as
gargalhadas da multidão e, hoje, Damião agradece a não existência de celulares
com câmeras de foto e de vídeo à época, caso contrário estariam famosos nas
redes sociais. Relataram tudo ao 'poderoso pai-de-santo'. Ele simplesmente se
riu da situação e disse-lhes que teriam de fazer tudo de novo.
-Vai para o inferno,
demônio de Satã! – foi tudo o que Damião conseguiu dizer antes de dar as costas
e entrar no carro proferindo um monte de desaforos.
Pois bem, macumba
errada precisa ser desfeita! E lá foram - mais uma vez - Damião e a amiga atrás
de consertar o desastre. Desta vez, procuraram uma mãe-de-santo. Mas antes
pediram referências para terem certeza de que se tratava de uma macumbeira do
bem.
E a ladainha
continuou:
-“Suncê” e sua amiga
vão ter de ir ao cemitério pedir perdão para as almas que eram donas das terras
que vocês pegaram sem pedir... “Suncê” e sua amiga vão ter de acender
sete velas de sete dias durante sete semanas para essas almas lhes concederem
perdão... “Suncê” vai ter de dar um banho de guaraná e pipoca no carro para
espantar os espíritos oportunistas... Depois disso tudo, “suncê” e sua amiga
ficarão livres da maldição – concluiu enfim a mãe-de-santo.
Damião Ficou
ressabiado em fazer outro ritual para quebrar a macumba desastrosa e considerou
melhor deixar tudo como estava. Bomba! E não é que os clientes inadimplentes
ficaram ainda mais inadimplentes? E o pior: os clientes adimplentes passaram a
atrasar os honorários.
-Ah, não! – gritou
raivosamente Damião.
Novamente foi ter com
a amiga. E lá foram os dois rumo ao cemitério. Ajoelhados no local que serve
para a oferenda de velas para os mortos, Damião implorava em voz alta:
-Perdão, almas
queridas... Perdão!
A amiga, toda
encolhida de vergonha, resmungava:
-Não precisa berrar,
Damião! As almas não são surdas... Você está me fazendo passar vergonha.
E estava mesmo. Havia
um monte de gente no oratório se rindo da situação. E foi assim que, durante
sete semanas, Damião e sua amiga precisaram acender sete velas de sete dias
para livrarem-se da maldição da macumba mal feita. Ah, e o pobre Damião levou
meses para livra-se das pipocas e do guaraná que jogou dentro do carro. O guaraná
e a pipoca teriam de ter sido lançados sobre o carro, não dentro dele.
Que atire a primeira
pedra quem nunca recorreu a uma “macumbinha”! E, ah! Simpatia nada mais é que
um termo usado por aqueles que têm medo de usar o termo macumba.
De macumbeiro e de louco todo mundo tem um pouco.
Éd Brambilla. CONTO. A MACUMBA.
2013.
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