"Em A METAMORFOSE, Kafka faz uma
profunda análise da desesperança e da alienação do homem moderno, imerso num
mundo que não consegue compreender. Uma crítica contundente à sociedade, que
despreza as diferenças, os enfermos e as pessoas improdutivas." (Torrieri
Guimarães - para a Martin Claret Editora).
Brambilla:
Franz Kafka escreveu uma de suas obras
mais conhecidas, "A metamorfose", em 1915, há mais de cem anos, e,
conectando-a à contemporaneidade, é perturbador o entendimento acerca de sua
atualidade. As "diferenças", a "enfermidade" e a
"improdutividade" (incluo aqui a velhice) ainda são cruelmente
estigmatizadas pelas relações sociais modernas como "cânceres", que,
por suscitar, na maioria dos casos, sentimentos velados de pena, são
dissimuladamente tolerados. E isso acontece exatamente por conta da falta de
entendimento do "bicho-homem" de que a vida não é estoica, e sim "movimento". Ou seja, os conceitos que definem o que é e o que não é aceitável
nos jogos das relações sociais, que moldam indiscriminadamente as
"diferenças", mudam; as pessoas "adoecem", envelhecem,
tornando-se, muitas vezes, "improdutivas". Mecanicamente, o
"apagamento" na esfera das ideologias escraviza o que é humano,
desqualifica sutilmente a sua capacidade de compreensão incondicional, tão
latente em alguns "animais", como no cachorro, por exemplo, que ama e
respeita o seu dono, seja este parte integrante de "x" ou
"y" ideologia, estando o mesmo "saudável" ou
"enfermo", sendo "jovem" ou "idoso",
"capacitado" ou "incapacitado" para o trabalho. A
METAMORFOSE é, sem dúvida, um drama doloroso e, ao mesmo tempo, restabelecedor
dessa capacidade de compreensão de um "estado" do "ser",
cada vez mais subjugado pelas relações humanas. Kafka, através de seu comovente
e intrinsecamente perturbador personagem, GREGOR SAMSA, desestabiliza,
confunde, e, por fim, transforma, nesta ordem, a capacidade de amar e de
aceitar incondicionalmente o outro, quando exprime naquele a forma de um
repugnante inseto (um "diferente"), que, por sua nova condição, tem
sua vida encerrada num quarto escuro (gradativamente desumanizado pelos seus)
tal qual um grave "enfermo", e, cosequentemente, tornando-se
socialmente um "incapaz". A princípio, os pais, Sr. e Sra. Samsa, e a
irmã, Grete, tentam, desconsertados em seus "entendimentos", zelar pelo rapaz, no entanto, demonstram nitidamente uma desestabilidade incômoda em suas próprias
essências, por terem de absorver em seu seio, como um dos seus, uma espécie
animalesca e repugnante. Com o passar do tempo, a família, que tinha Gregor
como o principal provedor da casa, se vê obrigada a ganhar o próprio sustento. A
relação com o rapaz passa a ser confusa e intolerável, a ponto de gerar
desprezo e raiva. A família, indiscriminadamente, o culpa por uma nova
realidade desgraçada que atinge a todos. Aquela não percebe, cegada através do
mais torpe que há no egoísmo, de que Gregor é a única e verdadeira vítima das
circunstâncias. O tempo avança e a família tem seu "entendimento", já
completamente fragilizado, transformado em legítima indiferença. Os pais e a
imã sentem, nesse delicado momento, uma necessidade vital de se livrarem de
Gregor. Este, cada dia mais dilacerado em sua essência humana, estigmatizado em
sua atual condição monstruosa, despede-se involuntariamente da vida. No início, tudo era para ele uma brincadeira, mas, agora, atingido na alma, vê na morte a
sua salvação. Resignado, deixa de alimentar-se e se entrega à depressão.
Gregor, enfim, morre, esquecido e subjugado pela família. Esta,
insensivelmente, sente-se aliviada e completamente livre de um
"fardo". Não mais terá de suportar um ser "diferente",
"enfermo" e "inválido". Nem mesmo se importa com o fim do
cadáver do rapaz, que a criada, indiferente, recolheu e se desfez como
costuma fazer com os restos de lixo. Sr. e Sra. Samsa e Grete, ao contrário,
tiraram o dia de folga e foram passear de bonde num dia ensolarado. Felizes,
os pais, agora, vislumbram na beleza e inteligência da filha, um futuro de
glórias, casando-a com um partido interessante (para eles). E a vida, assim,
segue naturalmente o seu curso, impiedosa com as vicissitudes que assolam quem
quer que seja. É essa "a metamorfose" tão delicadamente desenvolvida
por Kafka em sua narrativa. Uma transformação que vai, sorrateiramente,
desconstruindo as relações sociais dos indivíduos, modificando os mecanismos
psicológicos (que modificam paulatinamente do mais externo ao mais subjetivo
valor do ser humano) dos envolvidos, e, por fim, aniquila o que tem de ser
aniquilado para o restabelecimento do que pode ser suportado, porque é
compreendido como "normalidade" do estado das "coisas".
A sociedade, de modo geral, é eternamente estática em seus valores, num eterno "apagamento", "reconstrução" e "ressignificação" dos fatos e das verdades que constituem o "ser" e o mundo como um todo.
Leia "A METAMORFOSE" e tire
você mesmo as suas impressões.
BRAMBILLA, Éd. IMPRESSÕES ACERCA DE "A METAMORFOSE", DE KAFKA (resenha crítica). 2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário