Houve um dia, faz um tempinho já,
que, ao acordar, uma vontade inesperada de refletir tomou conta de mim. Foi
assim: de repente sentei em minha cama e corri os olhos ao redor para
vislumbrar o que estava por perto... E entendi: "A definição de VALOR é
verdadeiramente subjetiva." Nos cantos, os livros e apostilas de estudos
do dia-a-dia afirmavam a compreensão; o pequeno guarda-roupa de mais ou menos
uns noventa anos, imponente em uma parede, entregava a paixão que tenho por
antiguidades; livros de cabeceira - uma pilha deles em cima do criado-mudo,
também muito antigo - revelavam o meu amor e admiração por Clarice Lispector, o
meu respeito por Platão, e, revelando a eterna criança em mim, um dos meus
exemplares de "O Pequeno Príncipe". Então mergulhei um pouco em todas
as histórias que já li, em todos os personagens incríveis com quem já convivi.
Sim, eu convivo com os personagens dos livros que leio. São todos eles meus
amigos queridos. E numa brincadeira de 'pensamento puxa pensamento', lembrei
também de todas as histórias que já escrevi e dos personagens que criei até o
momento. Eles são meus filhos. E a mente resolveu vasculhar o arquivo de
memórias únicas. E mais que de repente, me vi em plena Unicamp levando uma
"surra de árvore" de J.. Ela ficou muito brava porque arranquei um
galho de uma árvore. E foi com esse mesmo galho que apanhei, enquanto ela
dizia: "-Está entendendo que dói?! Também doeu na árvore!" Depois da
surra, dei de cara com um sapo, e, para me vingar, peguei o pobrezinho nas mãos
e corri atrás de J., ameaçando-a. Ver J., que sempre teve como lema a "lei
do mínimo esforço", correndo desesperadamente rumo ao carro de E. W., foi
o melhor presente do mundo. Assim que J. entrou no carrou, E. saiu em
disparada; e eu corria atrás com a promessa de que nunca mais faria aquilo. Mas
o sapo, que não parava de coaxar em minhas mãos, fez com que o carro sumisse
nas dependências da Universidade. Foi também nesse dia que J. revelou que era
Deus. E. W. e eu acreditamos. Até hoje, quando penso em Deus, lembro-me de J..
Lembrei-me também do dia em que ultrapassei desapercebidamente uma barreira
policial na época em que o PCC estava contra-atacando bases policiais em todo o
Estado de São Paulo. Eu estava com F. e A.. Depois de muita confusão,
conseguimos, enfim, chegar a um 'videoquê'. E assim, mergulhei em muitos outros
momentos - que transformariam este texto em um livro - até chegar à real
importância de se ter grandes amigos. Lembrei-me de M. B., que quer construir
um pequeno chalé em sua chácara para que possamos ficar mais perto um do outro
o máximo de tempo possível; é que nossa amizade já vem de outras vidas (e eu
acredito piamente nisso). T. diz que o chalé é pra ela. Bobinha! Mas eu não me
importo de dividi-lo. Admiro muito essa baixinha invocada que tem o coração
mais generoso do mundo. Também tem V. B., que diz que eu posso morar na casa
dela. Já disse a todos que um dia moraremos em uma grande casa "de
época" - repleta de quartos - em uma linda chácara. Todos velhinhos. Será
o nosso asilo particular. Mais que isso, será o nosso templo. E todos serão
livres para serem o que realmente são. Para fazerem o que der na telha, no
tijolo, no caibro... E, sendo assim, para fechar a reflexão, conclui que sou
muito rico dentro de tudo o que me é valoroso. Com oitenta anos (se eu
alcançar), pouco me importará se eu estiver vivendo em uma mansão, em um asilo
ou embaixo de uma ponte. Onde eu estiver, terei tanta coisa para contar, tantas
brincadeiras para envolver os que estiverem ao meu redor, que seria preciso viver
séculos.
Éd Brambilla. CRÔNICA. De Repente.
2014.
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