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sábado, 26 de setembro de 2015

DE REPENTE

Houve um dia, faz um tempinho já, que, ao acordar, uma vontade inesperada de refletir tomou conta de mim. Foi assim: de repente sentei em minha cama e corri os olhos ao redor para vislumbrar o que estava por perto... E entendi: "A definição de VALOR é verdadeiramente subjetiva." Nos cantos, os livros e apostilas de estudos do dia-a-dia afirmavam a compreensão; o pequeno guarda-roupa de mais ou menos uns noventa anos, imponente em uma parede, entregava a paixão que tenho por antiguidades; livros de cabeceira - uma pilha deles em cima do criado-mudo, também muito antigo - revelavam o meu amor e admiração por Clarice Lispector, o meu respeito por Platão, e, revelando a eterna criança em mim, um dos meus exemplares de "O Pequeno Príncipe". Então mergulhei um pouco em todas as histórias que já li, em todos os personagens incríveis com quem já convivi. Sim, eu convivo com os personagens dos livros que leio. São todos eles meus amigos queridos. E numa brincadeira de 'pensamento puxa pensamento', lembrei também de todas as histórias que já escrevi e dos personagens que criei até o momento. Eles são meus filhos. E a mente resolveu vasculhar o arquivo de memórias únicas. E mais que de repente, me vi em plena Unicamp levando uma "surra de árvore" de J.. Ela ficou muito brava porque arranquei um galho de uma árvore. E foi com esse mesmo galho que apanhei, enquanto ela dizia: "-Está entendendo que dói?! Também doeu na árvore!" Depois da surra, dei de cara com um sapo, e, para me vingar, peguei o pobrezinho nas mãos e corri atrás de J., ameaçando-a. Ver J., que sempre teve como lema a "lei do mínimo esforço", correndo desesperadamente rumo ao carro de E. W., foi o melhor presente do mundo. Assim que J. entrou no carrou, E. saiu em disparada; e eu corria atrás com a promessa de que nunca mais faria aquilo. Mas o sapo, que não parava de coaxar em minhas mãos, fez com que o carro sumisse nas dependências da Universidade. Foi também nesse dia que J. revelou que era Deus. E. W. e eu acreditamos. Até hoje, quando penso em Deus, lembro-me de J.. Lembrei-me também do dia em que ultrapassei desapercebidamente uma barreira policial na época em que o PCC estava contra-atacando bases policiais em todo o Estado de São Paulo. Eu estava com F. e A.. Depois de muita confusão, conseguimos, enfim, chegar a um 'videoquê'. E assim, mergulhei em muitos outros momentos - que transformariam este texto em um livro - até chegar à real importância de se ter grandes amigos. Lembrei-me de M. B., que quer construir um pequeno chalé em sua chácara para que possamos ficar mais perto um do outro o máximo de tempo possível; é que nossa amizade já vem de outras vidas (e eu acredito piamente nisso). T. diz que o chalé é pra ela. Bobinha! Mas eu não me importo de dividi-lo. Admiro muito essa baixinha invocada que tem o coração mais generoso do mundo. Também tem V. B., que diz que eu posso morar na casa dela. Já disse a todos que um dia moraremos em uma grande casa "de época" - repleta de quartos - em uma linda chácara. Todos velhinhos. Será o nosso asilo particular. Mais que isso, será o nosso templo. E todos serão livres para serem o que realmente são. Para fazerem o que der na telha, no tijolo, no caibro... E, sendo assim, para fechar a reflexão, conclui que sou muito rico dentro de tudo o que me é valoroso. Com oitenta anos (se eu alcançar), pouco me importará se eu estiver vivendo em uma mansão, em um asilo ou embaixo de uma ponte. Onde eu estiver, terei tanta coisa para contar, tantas brincadeiras para envolver os que estiverem ao meu redor, que seria preciso viver séculos.


Éd Brambilla. CRÔNICA. De Repente. 2014.

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