Ah, Gustave
Flaubert, sua narrativa é sublime; envereda-se na alma e não deixa brechas para
a sincronizada e necessária pausa para uma respiração; leio, mesmo sem fôlego,
as sutis nuances que descortinam segredos de entranhas d'Alma, não somente da
alma de Madame Bovary, mas da minha também. E, ah! Tenho certeza absoluta de
que Clarice Lispector, assim como estou fazendo, o degustaria com a alma. É
muita semelhança, meu querido! Você que está me lendo agora, mergulhe nos
trechos a seguir, e, depois da última linha, sairá correndo até à livraria mais
próxima para adquirir um exemplar de MADAME BOVARY, caso ainda não tenha lido,
obviamente:
(...) Quando se
confessava, inventava pecadinhos só para ficar mais tempo ajoelhada à sombra,
mãos unidas, rosto encostado na grade, ouvindo o murmurar do padre. As
comparações de noivo, esposo, amante celeste e marido eterno que se repetiam
nos sermões provocam-lhe no fundo da alma doçuras inesperadas. (...) p. 43.
(...) Aquele
espírito positivo em meio a seus entusiasmos, que amara a igreja pelas flores,
a música pelas letras de romanças e a literatura pelas excitações passionais,
insurgia-se diante dos mistérios da fé, do mesmo modo que se irritava contra a
disciplina, que era algo antipático à sua constituição. (...) p. 47.
(...) Às três horas
da manhã, começou o cotilhão. Emma não sabia valsar. Todo mundo valsava,
inclusive a senhorita d'Andervilliers e a marquesa; ficaram apenas os hóspedes
do castelo, uma dúzia de pessoas mais ou menos.
Nesse momento, uns
dos que valsavam, chamado coloquialmente de visconde, e cujo colete, bastante
aberto, parecia esculpido sobre o peito, veio pela segunda vez convidar a Sra.
Bovary para dançar, assegurando-lhe que a guiaria e que ela se sairia bem.
Começaram
lentamente, depois aceleraram. Rodopiavam: tudo girava em torno deles, as
lâmpadas, os móveis, os lambris e a pista, como se fosse um disco sobre um
eixo. Ao passar perto das portas, a cauda do vestido de Emma roçava-se nas
calças de seu par; as pernas de um e de outro se cruzavam; ele baixava seus
olhos para ela, e ela levantava os seus para ele; quando um torpor tomou conta
dela, parou. Recomeçaram; e, com um movimento mais rápido, o visconde,
arrastando-a escondeu-se com ela no fundo da galeria, onde, ofegante, ela quase
caiu, apoiando por um instante a cabeça contra o peito dele. Depois, rodopiando
ainda, mas com mais suavidade, ele reconduziu-a ao seu lugar; ela voltou-se
para a parede e pôs a mão diante dos olhos. (...) pg. 60.
(...) Quanto a
Emma, ela não se interrogava para saber se o amava. O amor, conforme
acreditava, devia chegar de repente, com grandes tumultos e fulgurações -
furacão dos céus que desaba sobre a vida, transtorna-a, arranca as vontades
como folhas e arrasta o coração inteiro para o abismo. (...) p. 103.
(...) Estavam no
começo de abril, quando as primaveras desabrocham; um vento morno passava sobre
os canteiros trabalhados, e os jardins, como mulheres, pareciam preparar-se
para as festas de verão. Através dos barrotes do caramanchão e por toda volta,
via-se o rio na pradaria, que desenhava na relva sinuosidades vagabundas. O
vapor da noite passava por entre os álamos sem folhas, esbatendo seus contornos
com uma tinta violeta, mais pálida e mais transparentes do que uma gaze sutil
pousada em seus galhos. (...) p. 111.
(...) -Essa
conspiração do mundo não a revolta? Existe um só sentimento que ele não
condena? Os instintos mais nobres, as simpatias mais puras são perseguidas,
caluniadas, e, se duas pobres almas, enfim, encontram-se, tudo é organizado
para que não possam se unir. Elas, no entanto, tentarão, baterão suas asas, se
chamarão, oh! Não importa, mais cedo ou mais tarde, em seis meses, dez anos,
elas se reunirão, se amarão, pois a fatalidade o exige, porque nasceram uma
para a outra. (...) p. 145.
FLAUBERT; Gustave.
Madame Bovary. Editora: L&PM POCKET, vol. 328, edição de setembro de 2013.
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