O que se segue neste texto aconteceu no dia dez de março de dois
mil e quinze, em tono de quatorze horas e trinta minutos. Foi tudo muito
rápido. Pouco tempo depois, mais ou menos quinze horas e trinta minutos, eu
ainda podia ver, da sacada do meu apartamento, a sombrinha da mulher. O objeto,
estático, congelado no tempo, como numa imagem de retrato, ainda simbolizava
uma luta agonizante pela sobrevivência. Foi assim: do lado contrário de uma das
avenidas paralelas que cortam a lateral do prédio onde moro, eu, com minhas
Lilica e Leleca, as yorks, presenciei o que, oh Deus!, jamais quero presenciar
novamente: um automóvel, preto (símbolo ideológico do luto, preconizado pela
sociedade há tempos), transformara-se num fiel executor de mais um planejamento
rotineiro da Morte; esta, que obedece a uma noção de espaço/tempo completamente
diferente da que é habitual a todos nós, pobres viventes a sua mercê. Foi como
se Ela, eficaz em sua tarefa de ceifar vidas, houvesse dito para si mesma:
"Vejo um carro desgovernado... Vejo também uma mulher caminhando na
calçada, cuja maior preocupação é com seu retorno ao trabalho... Vejo em meu
relatório diário que hoje, ela, a Mulher, não pode me escapar..." O
automóvel, até então, substituindo o sujeito humano, subiu pela calçada, rasgou
o chão entre um muro e um poste, e, como se possuísse um daqueles
‘limpa-trilhos’ de trem, varreu a Mulher, que caminhava de costas para Ele (o
veículo enlouquecido), atravessou a avenida pela qual descia e um canteiro
repleto de ‘tartarugas’ de sinalização de trânsito (arrancando alguns, tal era
a sua violência), e rodopiou em meio à avenida paralela, de mão contrária.
Finalmente, fazendo jus a todas as contradições às quais se submetera -
sequencialmente -, estagnou, amparado pelo meio-fio (como se este, trêmulo de
horror, tivesse resolvido cessar uma continuidade de desgraças), com sua
dianteira na contramão. Eu, petrificado, agarrado às minhas ‘meninas’, tentava
discernir se o que via era realidade ou pesadelo. Então vi quando o automóvel
passou a ser apenas o condutor do sujeito, quando um rapaz, aparentando uns
vinte anos de idade, saiu do interior da geringonça. Num veículo desgovernado,
o motorista deixa a posição de condutor e passa a ser ‘o conduzido’, e como
tal, também ele passa a ser uma vítima - obviamente que suas responsabilidades
no processo do acontecimento serão apuradas. Ele, o rapaz, completamente
transtornado, se pôs a andar em ziguezague em meio à avenida. Por sorte, ou por
uma força maior, a avenida, normalmente movimentada no horário do acontecido (em
torno de quatorze horas e trinta minutos), estava completamente vazia. Também
eu, ainda com os sentidos em ziguezague, desviei o olhar para a calçada da outra
avenida, e vi, estática, a sombrinha verde, com contorno bege nas extremidades;
ela estava aberta, aparando uma chuva que caía fininha, feito orvalho. Ao lado
dela, a sua dona. Meu Deus, que cena dilacerante! Senti minha garganta
embolada... Minhas lágrimas corriam involuntárias... A mulher - com uma das
pernas retorcida, como se o joelho não lhe coubesse (o pé amparado pela coxa),
um dos braços retorcido para trás, a cabeça molhada de um sangue
vermelho-escuro - agonizava numa respiração soluçada. O ‘resgate’ chegou depois
de mais de vinte minutos (era como se este também estivesse a cargo de Dona
Morte)... A cena de horror, tão rapidamente construída, se dissipou na mesma
velocidade... O ‘resgate’ sumiu feito um foguete rasgando uma das avenidas e varrendo
os outros carros de sua frente... O guincho levou o ‘carro assassino’...
Policiais levaram o seu dono... O trânsito voltou a sua normalidade... Só a
Mulher não voltou para o trabalho... E nem voltará mais, ela não resistiu... É
que a vida nem sempre resiste à morte. Para os seus, novos acontecimentos ainda
se constituirão... Novas transformações os esperam... Quanto a mim, enquanto
escrevia este texto, observava da sacada, com a alma resignada, a sombrinha
esquecida na calçada, simbolizando uma fragilidade que é própria do que é
humano. O que me coube foi acender uma singela vela e desejar luz à mulher.
Jussara (o nome dela), que Deus a tenha, amém! Escrevi este texto como forma
única de extravasar um turbilhão de pensamentos.
Éd Brambilla. CRÔNICA. A Vulnerabilidade
do que somos. 10/03/2015.
PS* Crônica baseada em fatos reais.
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