ALMa RaBiScAdA

sábado, 21 de março de 2015

A VULNERABILIDADE DO QUE SOMOS

O que se segue neste texto aconteceu no dia dez de março de dois mil e quinze, em tono de quatorze horas e trinta minutos. Foi tudo muito rápido. Pouco tempo depois, mais ou menos quinze horas e trinta minutos, eu ainda podia ver, da sacada do meu apartamento, a sombrinha da mulher. O objeto, estático, congelado no tempo, como numa imagem de retrato, ainda simbolizava uma luta agonizante pela sobrevivência. Foi assim: do lado contrário de uma das avenidas paralelas que cortam a lateral do prédio onde moro, eu, com minhas Lilica e Leleca, as yorks, presenciei o que, oh Deus!, jamais quero presenciar novamente: um automóvel, preto (símbolo ideológico do luto, preconizado pela sociedade há tempos), transformara-se num fiel executor de mais um planejamento rotineiro da Morte; esta, que obedece a uma noção de espaço/tempo completamente diferente da que é habitual a todos nós, pobres viventes a sua mercê. Foi como se Ela, eficaz em sua tarefa de ceifar vidas, houvesse dito para si mesma: "Vejo um carro desgovernado... Vejo também uma mulher caminhando na calçada, cuja maior preocupação é com seu retorno ao trabalho... Vejo em meu relatório diário que hoje, ela, a Mulher, não pode me escapar..." O automóvel, até então, substituindo o sujeito humano, subiu pela calçada, rasgou o chão entre um muro e um poste, e, como se possuísse um daqueles ‘limpa-trilhos’ de trem, varreu a Mulher, que caminhava de costas para Ele (o veículo enlouquecido), atravessou a avenida pela qual descia e um canteiro repleto de ‘tartarugas’ de sinalização de trânsito (arrancando alguns, tal era a sua violência), e rodopiou em meio à avenida paralela, de mão contrária. Finalmente, fazendo jus a todas as contradições às quais se submetera - sequencialmente -, estagnou, amparado pelo meio-fio (como se este, trêmulo de horror, tivesse resolvido cessar uma continuidade de desgraças), com sua dianteira na contramão. Eu, petrificado, agarrado às minhas ‘meninas’, tentava discernir se o que via era realidade ou pesadelo. Então vi quando o automóvel passou a ser apenas o condutor do sujeito, quando um rapaz, aparentando uns vinte anos de idade, saiu do interior da geringonça. Num veículo desgovernado, o motorista deixa a posição de condutor e passa a ser ‘o conduzido’, e como tal, também ele passa a ser uma vítima - obviamente que suas responsabilidades no processo do acontecimento serão apuradas. Ele, o rapaz, completamente transtornado, se pôs a andar em ziguezague em meio à avenida. Por sorte, ou por uma força maior, a avenida, normalmente movimentada no horário do acontecido (em torno de quatorze horas e trinta minutos), estava completamente vazia. Também eu, ainda com os sentidos em ziguezague, desviei o olhar para a calçada da outra avenida, e vi, estática, a sombrinha verde, com contorno bege nas extremidades; ela estava aberta, aparando uma chuva que caía fininha, feito orvalho. Ao lado dela, a sua dona. Meu Deus, que cena dilacerante! Senti minha garganta embolada... Minhas lágrimas corriam involuntárias... A mulher - com uma das pernas retorcida, como se o joelho não lhe coubesse (o pé amparado pela coxa), um dos braços retorcido para trás, a cabeça molhada de um sangue vermelho-escuro - agonizava numa respiração soluçada. O ‘resgate’ chegou depois de mais de vinte minutos (era como se este também estivesse a cargo de Dona Morte)... A cena de horror, tão rapidamente construída, se dissipou na mesma velocidade... O ‘resgate’ sumiu feito um foguete rasgando uma das avenidas e varrendo os outros carros de sua frente... O guincho levou o ‘carro assassino’... Policiais levaram o seu dono... O trânsito voltou a sua normalidade... Só a Mulher não voltou para o trabalho... E nem voltará mais, ela não resistiu... É que a vida nem sempre resiste à morte. Para os seus, novos acontecimentos ainda se constituirão... Novas transformações os esperam... Quanto a mim, enquanto escrevia este texto, observava da sacada, com a alma resignada, a sombrinha esquecida na calçada, simbolizando uma fragilidade que é própria do que é humano. O que me coube foi acender uma singela vela e desejar luz à mulher. Jussara (o nome dela), que Deus a tenha, amém! Escrevi este texto como forma única de extravasar um turbilhão de pensamentos.

Éd Brambilla. CRÔNICA. A Vulnerabilidade do que somos. 10/03/2015.

PS* Crônica baseada em fatos reais.

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