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quinta-feira, 29 de março de 2012

A DESCOBERTA DO MUNDO




Uma escritora decidida a desvendar as profundezas da alma. Essa é Clarice Lispector, que escolheu a literatura como bússola em sua busca pela essência humana. Sua tentativa de transcender o cotidiano revela-se em personagens na iminência de um milagre, uma explosão ou uma singela descoberta. Todos suscetíveis aos acontecimentos do dia a dia. Vidas que se perdem e se encontram em labirintos formados por uma linguagem única, meticulosamente estruturada. E é por essa linguagem que Clarice Lispector constrói uma obra de caráter tão profundo quanto universal.


As crônicas de Clarice Lispector, publicadas no JORNAL DO BRASIL, de 1967 a 1973, nos permitem compreender melhor a escritura desta que se consagrou como uma das maiores escritoras do Brasil. Se nos contos e romances, o mistério de uma narrativa envolve o leitor num processo quase que iniciático, nas crônicas esse mistério vai aos poucos sendo desvendado, revelando o mundo pessoal e subjetivo da autora enigmática que viveu no Leme, próximo às areias e ao mar de Copacabana, que tanto apreciava.

Ao aceitar o convite do JB para escrever uma coluna aos sábados, Clarice Lispector sente a estranheza entre ser escritora e jornalista: NA LITERATURA DE LIVROS PERMANEÇO ANÔNIMA E DISCRETA. NESTA COLUNA, ESTOU DE ALGUM MODO ME DANDO A CONHECER, comenta na crônica de 21 de setembro de 1968.

Gênero leve, ameno, de leitura mais fácil, a crônica traz quase sempre a interpretação de um fato conhecido por todos, investido pela subjetividade de quem comenta o assunto, dando um sabor novo ao acontecido. Com a sua despretensão, a crônica quebra o monumental, o extraordinário, celebrando o cotidiano, o dia a dia e mostra belezas insuperáveis através da argúcia, da graça, do humor de quem a escreve. A informalidade investe de leveza uma linguagem cuja densidade busca revelar o segredo das coisas mais simples, o cotidiano transfigurado pelo olhar de Clarice, que redescobre nas Macabéias de todo dia a luminosidade de uma presença estelar. Entre flanelas e vassouras, mulheres simples e humildes se transformam em personagens que se eternizam. Aninha, Jandira, Ivone ou Aparecida são algumas dessas estrelas que saem de suas vidas apagadas para serem reveladas pelo olhar atento e sensível, onde escapa, por vezes, um leve e sorrateiro toque de humor, como no caso da empregada que fazia análise, ou da "mineira calada", que gostava de ler livros complicados.

A subjetividade impera nas crônicas de Clarice, onde o factual parece importar menos do que o seu exercício funcional e autobiográfico. Na coluna dos sábados, uma mulher se constrói, se questiona diante de si mesma, dos amigos e... descobre o mundo.


Sylvia Perlingeiro Paixão (Doutora em Literatura comparada, UFRJ)


#ficaadica

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