ALMa RaBiScAdA

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Ele vinha sentindo-se estranho já tinha algum tempo. Passou a viver dentro de si feito um caracol e, como tal, arrastava-se de um lado para o outro da casa. A distância mais longa que percorria resumia-se ao quintal dos fundos. Era ali que passava as horas, mergulhado em seus pensamentos. A presença de pessoas desalinhava seu raciocínio, portanto, o vazio do pequeno espaço o tranquilizava. Então deixava os sons ao redor penetrarem em sua mente. Gostava de identificar cada um deles. Entre um som e outro, entregava-se a lampejos do passado:
- Você se lembra deste lugar?
- Sim. É o lugar dos meus oito anos de vida.
- Consegue sentir o cheiro da argila úmida e da sensação leve de apertá-la por entre os dedos?
- Não há como não sentir. Era com esta argila que os meus sonhos de criança tomavam forma. Foi dela que vi nascerem carrinhos de brinquedo, televisores, refrigeradores, 'trenzinhos' e tudo aquilo que a pobreza não permitia.
- A pobreza era um problema para você?
- Não, minha imaginação era fértil demais. Não havia espaço para pensar nela.
- E hoje, como lida com isso?
- Caminho em busca de novos sonhos, mas sempre que me julgo pronto para realizá-los, me deparo com velhos pesadelos.
- Fala-me sobre isto.
- São fantasmas que me assombram e que estão relacionados à perda de pessoas e a necessidades básicas de qualquer ser humano que tem o direito de viver com o mínimo de dignidade.
- Mas não seria este um fator relacionado à pobreza? Tua imaginação perdeu a fertilidade ou esta fez parte apenas do teu mundo lúdico?
- Em relação à perda de pessoas, me faltava entendimento para a morte. Não compreendia por que pessoas cujo amor era recíproco iam embora sem ao menos dizer para onde. A resposta que me davam era sempre a mesma: Deus assim o quis. Mas por que Deus agia assim? Qual era a verdade contida neste propósito? Era o que eu queria entender e, depois de muito tempo, aprendi sobre o viver-morrer. E quanto às necessidades básicas, me refiro à falta do pão e do agasalho, minha idade era pouca, mas havia em mim uma compreensão incomum para este fato. Meu pai levantava-se muito cedo todos os dias para o ganha-pão, mas as bocas eram muitas e, muitas vezes, percebia que minha mãe deixava de se alimentar para que os de menos idade não sofressem da sensação de estômago vazio. Isso dilacerava minha compreensão, não considerava justo o fato de ter que haver o sacrifício de um em prol do outro. Isso sim era indigno, não a pobreza em si; esta eu driblava com minha imaginação.
- Havia algo que podia fazer para amenizar esse sacrifício?
- Dentro de minha compreensão e estrutura, tinha consciência de minha participação no todo. E isto me pedia uma responsabilidade solidária. Também eu precisava batalhar por um pedaço de pão, por menor que fosse. Havia uma pequena sorveteria nas proximidades de casa. Fui falar com o dono, com argumentos e proposta de gente grande. Ele se riu de mim, não de deboche, mas de comoção. Percebi isso em seu olhar. Eu não estava ali em busca de caridade. Queria trabalho. E dentro de meus oito anos, consegui passar esta verdade. Para o homem, a idade mínima para a aceitação de um sorveteiro era de doze anos. Passei a ser o seu “Grande Pequeno Sorveteiro”. Tornei-me sua mascote. E de rua em rua ia esvaziando a pequena caixa de sorvetes que fora providenciada exclusivamente para a minha falta de tamanho. Os olhos do homem lacrimejavam toda vez que eu retornava com a caixa vazia pelo menos umas quatro vezes ao dia. Fui sorveteiro até os dez anos de idade, momento em que senti necessidade de empreendimento maior. E foi com os lucros dos sorvetes que contribui com o meu pedacinho de pão durante dois anos. Nova proposta me enchia de esperança. E foi com esta esperança que fui falar com o dono de um “Ferro-Velho”. Passei então a atuar no ramo de sucata. Com um carrinho adaptado com caixa de refrigerador, andei cada centímetro de terreno baldio. Aos doze anos, já me sentia importante. Passei a estudar à noite. De manhã sucateiro. À tarde vendedor de mandioca. Lembro-me de uma passagem no mínimo inusitada: havia um senhor que vendia ovos e, por diversas ocasiões, disputamos as mesmas ruas. Enquanto ele gritava OVO! Eu gritava MANDIOCA! Esse fato chamava tanto a atenção dos tão desejados fregueses que acabávamos por vender os dois produtos.
“Um quilo de mandioca para mim garoto... E não vá roubar no peso, hein! E o senhor, por favor, me veja uma dúzia de ovos... Mas preste atenção que uma dúzia é doze e não onze.” – sempre brincava conosco uma senhora de meia idade.
- E o que essas lembranças trazem para tua essência?
- É como uma tórrida chuva de primavera a brindar-me feito água benta a lavar-me a alma. Enquanto te respondo, sinto a linfa que percorre todo o meu corpo a revigorar-me a pele enquanto milhões de gotas d´águas primaveris lavam e enchem de novo perfume o pedaço de mundo que me cabe. Hoje, sinto-me mais humano. Tenho consciência do valor do pão, a importância da amizade, a poesia contida na solidariedade, a pureza da incondicionalidade do ‘dar’ sem nada esperar em troca e, acima de tudo, o AMOR AO PRÓXIMO.
- Obrigado por teu depoimento. Acredito que muitos se identificarão com tua experiência.
- Foi um grande prazer falar sobre essas passagens.


Éd Brambilla. CONTO. UM DIÁLOGO NECESSÁRIO. 2008.

Nenhum comentário: