Projetar-se rumo ao passado pode ser uma experiência bastante positiva
se a mesma trouxer à tona respostas para possíveis transtornos do tempo
presente. O regresso ao lúdico, em especial, nem sempre traz recordações
experimentais de alegria, mas no que tange a crescimento humano, a sedimentação
de tais experiências pode trazer uma grande edificação pessoal.
Em uma manhã de primavera, quando os
jardins trazem para a vida a beleza e a magia da Mãe Natureza em formas, cores
e cheiros variados, Eduardo acordara com uma sensação nostálgica. Sua mente
martelava-lhe a cabeça e o remetia ao ano de mil novecentos e setenta e nove.
Era inverno. Em suas lembranças estavam Dona Veranice - a primeira professora
-, os principais colegas de classe e, principalmente, a alegria que sentia ao
tomar posse, mais uma vez, de sua carteira de estudo. Apesar da alegria,
Eduardo estranhou os olhares dos demais focados em sua direção. Dona Veranice
fora ao seu encontro e o abraçou com ternura. Em seguida, agasalhou-o com seu
casaco de lã marrom. Eduardo conseguia sentir o calor e o doce perfume que
vinha do casaco.
Ele estudava no período da manhã, em
uma época em que o inverno era extremamente rigoroso. O frio cortava-lhe a pele
feito navalha. Era um tempo difícil em que roupa de frio e calçado não passava
de um desejo impossível. Mas Eduardo sentia-se feliz e agradecia por contar com
uma grande força de vontade para crescer e evoluir em conhecimento. Tinha sede
de aprendizado.
Nesse dia, Eduardo fora para a escola
apenas de calção e camiseta. Estava descalço, com os pés sujos e machucados
devido ao caminho de pedras e trilhas em meio a matagais, com todas as suas
armadilhas. Seu pé esquerdo sangrava devido a um corte provocado por algum caco
de vidro. O prazer de estar em sala de aula suplantava a dor e eventuais
discriminações por parte de alguns alunos. Mas a manifestação de maior peso
fora exatamente o contrário: SOLIDARIEDADE. No dia seguinte, foi surpreendido
com tantos pares de calçados e agasalhos trazidos por diversos alunos.
Esta passagem ficou marcada na
personalidade de Eduardo de uma maneira tão intrínseca que, mesmo depois de
tanto tempo, sente dificuldade em andar com os pés desprotegidos. Tem
necessidade de que os mesmos estejam ao menos calçados com meias. E foi desta maneira
que desviou o olhar para os pés e percebeu que estava caminhando no jardim de
sua casa com os pés trajando meias de lã vermelhas. Sentou-se em um banco de
madeira, olhou para o céu com um sorriso no rosto e agradeceu a Deus por ter
chegado até ali.
Éd Brambilla. CONTO. SOLIDARIEDADE. 2007.
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