ALMa RaBiScAdA

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

ALMaS DÍSPaReS

Éd Brambilla apresenta:


    

       Capítulo I

Apresentações: Antônio Descrente & Maria Esperança

Trata-se de um casal incomum: ela, que aos trinta e seis anos de idade, nunca havia experimentado o amor que paralisa e faz com que a vida se mostre cheia de novidades, encontrou nele a esperança da plenitude; ele, que aos trinta e oito anos, vivera apenas de amores fugazes, encontrou nela a falta de aviso prévio do amor que tantos vislumbram. O fato é que de quando em quando ambos mergulhavam em suas entranhas em busca de novas emoções. No entanto, o ar lhes faltava e os dois voltavam à superfície envoltos apenas por prazeres efêmeros.

Mergulhar no profundo do que se é e buscar o que verdadeiramente se quer exige esforço de uma retidão precisa.

O nome da mulher poderia ser o nome de qualquer mulher sonhadora e esperançosa: dou-lhe o nome de Maria Esperança; ele, que até então não acreditava no amor, batizo-lhe agora com o nome de Antônio Descrente.

Maria Esperança, quando criança, vivia de pequenos sonhos roubados de histórias fictícias dos livros que lia. Quanto aos sonhos grandes, ela tinha pavor de tomá-los para si. Faltava-lhe ambição. E havia nela o inoportuno medo de parecer criminosa demais, fato que lhe arrepiava toda, como se entre o roubar pouco e o roubar muito houvesse uma extraordinária misericórdia. Já era difícil para a menina viver os pequenos sonhos, e, como julgava sua alma pequena demais, não cabia ali uma história de grandes acontecimentos.

Antônio Descrente, por conta de severas complicações de gestação, nascera de um parto cuja mãe oscilava entre um suspiro de vida e outro de morte. Se Antônio fora presenteado com a vida, foi por pura incondicionalidade do amor materno. E como castigo, despercebido no silêncio daquilo que não se ousa procurar uma resposta, teve a sorte de sua criação lançada a um pai incorrigivelmente machista e mulherengo.

A sorte, muitas vezes, é de uma sordidez de dar nó na garganta; ela é quem faz as escolhas, apesar de todo o livre arbítrio que se julga ter. Quando adolescente, o imberbe menino olhava para as meninas através de olhos lubrificados com testosterona; vislumbrava a fêmea e não a mulher.

O rapaz atravessara o auge da juventude acreditando que poderia dar prazer a toda mulher que lhe mostrasse interesse. E nesta crença, amarrada com nó-de-marinheiro, em dar o que nunca teve, não lhe cabia na essência que sofria de uma miserável pobreza de felicidade. Era involuntariamente solitário.

A solidão mais triste é aquela que habita na alma com uma inconsciente vontade do que se quer. E o invisível do que se quer prolonga-se em flagelo de punição. Antônio não tinha consciência do flagelo que carregava em procissão para pagamento de promessa não feita.


           Capítulo II
  
Maria “rebelada”

Em uma tarde de domingo – de uma primavera esquecida –, Maria sentiu, num repente de surpresa inevitável, um comichão a lhe corroer o caráter. Brotava ali uma necessidade alimentada com madeira seca que precisava ser consumida através do que há de mais carrasco no fogo: decidira tornar-se uma criminosa digna das honrarias que somente os que sentem a consumição do amor poderiam compreender. Era o tardio momento de viver uma história em cores, tons e sons a enveredar o mais secreto de seus desejos. Foi então pela primeira vez ao cinema. Os livros obrigavam-na a compor cenários. E agora ela queria o cenário pronto. Era hora para um assalto em grande estilo; e o prêmio era a essência da heroína de um cordel. Maria idolatrava romances recheados de amores impossíveis que enfrentavam obstáculos tortuosos até alcançar a possibilidade.
A súbita obsessão em tomar posse de história alheia era, para Maria, uma espécie de fuga das ciladas do amor. Filha única, de pais que mal se amavam, crescera ouvindo da mãe: “Jamais confie no amor de um homem, minha doce menina!” Daí o fato de tornar-se - desde pequenina - uma ladra de amores com finais felizes.
Maria debulhou-se em lágrimas logo nos primeiros instantes do filme. O choro saía lento, de um sofrimento soluçado. A expressão de seu rosto era de uma gravidade de espera de notícia de falecimento de quem se quer muito. Eis que ela perdera o intangível que reside na sensação daquilo que se vive pela primeira vez. Era novidade demais. Estava no cinema e perdera-se em não se dar conta de que estava. Fora inóspita para si mesma. E a crueldade do tempo consiste no fato de não voltar atrás. É uma regra necessária para que toda história não se torne repetitiva demais. Cada um que se preocupe em cuidar do próprio tempo.


Capítulo III

Antônio & Maria: Insights

Numa rua estreita, ornada dos dois lados com casas estreitas e apinhada de pessoas de mentalidades estreitas – e tudo o que existe de mais estreito na busca do prazer comprado –, estava Antônio. Ele entrou numa dessas casas. O espaço, com uma iluminação opaca e todo atordoado com o branco ofendido da fumaça de cigarros, parecia mais um crematório. Ali, no balcão do puteiro, Antônio sentou-se num banco de vime, cujo estado denunciava o fim de seus dias. Ele espalmou as mãos sobre o balcão, ainda cheio de copos sujos esquecidos por assíduos clientes - jovens e velhos, fossem eles solteiros ou casados. A sua frente, numa prateleira inteira abarrotada com sonhos de ébrio, bailavam, libidinosas, garrafas de todas as cores e formatos.
Antônio estava no segundo copo de uísque e, quando pensou em pedir o terceiro, uma moça, com os cabelos de um ruivo mentiroso e um vestido que a difamava logo no primeiro instante, cumprimentou-o toda lânguida. Também ela queria um copo de uísque, que pretendia pagar com sua companhia. Ele, de súbito, compreendeu e aceitou o feudal da situação. Antônio, a esta altura de sua miserável vida amorosa, sentia-se desanimado demais para as conquistas batalhadas e merecidas. Seria este fato um sinal de que ele começava a perceber a miserável falta daquilo que nunca havia experimentado, o amor?
Em seu modesto quarto de pensão, Maria estava em dúvida sobre qual vestido usaria em seu aniversário de trinta e seis anos. "Preto ou verde?" – pensava consigo mesma. Para dizer uma verdade toda banhada em ofensa, não importava a cor do vestido. Ela estaria só. Mais uma vez só. Escolheu o verde. Todo aniversário era o mesmo ritual: arrumava-se toda, fitava-se no espelho, procurava por possíveis novas rugas, apanhava a bolsa e ia comemorar a data em companhia de algum novo herói cinematográfico. Quando chegou à porta do cinema e se deparou com o cartaz do filme anunciado, um lampejo de memória indesejável atordoou-lhe a mente: já tinha vivido aquele amor. Maria, em toda a sua vida, jamais repetira um romance, e, naquele momento, pela primeira vez, não sabia o que fazer. Seria o prenúncio da urgência de morte do abstrato em prol do concreto?


Capítulo IV

Cupido

Antônio acordou no começo da tarde ainda com o cheiro das coisas estreitas da noite passada. Banhou-se na intenção de lavar seus pecados, vestiu-se com discrição e decidiu que naquela noite encontraria a sua outra metade nesta vida.
Do outro lado da vida de Antônio, estava Maria, que, neste mesmo dia, acordara cedo, como de costume. Também ela se banhara – mas sem intenção de lavar “pecados da carne”; estes Maria não os tinha.
Já era noite. As luzes artificiais, aos poucos, emprestavam a sua magia à cidade. Antônio recostou-se num banco de uma pequena praça em frente a uma catedral e se pôs a meditar sobre o que queria para o futuro.
Do outro lado da rua, Maria esperava por um táxi. Estava segura de que naquela noite passaria a ser mais “Maria” e menos “Esperança”.
Acontece que nem tudo o que se quer acontece como se quer – o que pode ser uma deliciosa surpresa.
Uma cadelinha, já cansada de sua condição – não de canina, mas de miséria –, decidiu atravessar a rua; provavelmente em busca de uma novidade que lhe mudasse o destino. E essa novidade havia de ser encontrada do outro lado. O atropelamento fora inevitável. A pancada não foi tão forte, apenas o suficiente para que a canina perdesse os sentidos. Maria – toda comovida por natureza – correu em direção à pobrezinha porque sempre amara os bichos. Sentou-se na calçada, retirou da bolsa uma garrafa com água e banhou a cabeça da bichinha. A cadelinha levantou a cabeça e sorriu de gratidão por Maria. 
-Ela ficará bem.
Maria ergueu os olhos para ver de onde vinha a voz. Deparou-se com Antônio.
Naquele momento a mulher teve a certeza de que tudo ficaria realmente bem. Antônio ofereceu-lhe ajuda. Disse-lhe que morava a menos de quinhentos metros dali. Maria aconchegou a cachorrinha no colo e levantou-se com a ajuda de Antônio. Os dois se apresentaram.
Alguma coisa no olhar de ambos dava a certeza do que estavam procurando.


       Capítulo V

Mãos Entrelaçadas e Corações Palpitantes

Já em sua casa, Antônio pegou um pouco de algodão, uma pequena vasilha com água quente e um frasco de mercúrio. Levou tudo para Maria, que o esperava na sala com a cachorra. Esta também tinha um brilho diferente no olhar. Depois dos primeiros socorros, Maria pediu a Antônio que trouxesse um pouco de alimento para a acidentada.
-Repare como a pobrezinha come cheia de aflição – disse Maria toda terna.
Antônio sorriu comovido.
Algum tempo depois, Maria assustou-se com as horas e resolveu que iria embora.  Antônio convidou-a para um passeio no dia seguinte. Ela assentiu com a cabeça.
Durante a madrugada, que se fizera eterna nesta noite, Antônio e Maria, cada qual em seu canto, suspiraram possibilidades que emergiam de sutis faíscas de desejos.
Na tarde do dia seguinte, num barzinho de esquina, lá estavam Maria e Antônio – não era o lugar mais sofisticado da cidade, mas o lugar onde nasceria a felicidade de duas almas díspares e prontas para o amor.
Maria estava tão cheia de futuro que aquele lugar imbuíra-se da mais pura e bela magia.
Antônio chegou com um atraso de dez minutos. Sentou-se de frente para Maria e estendeu suas mãos em busca das dela. Entrelaçaram-se as mãos (trêmulas, suadas, quentes, esperançosas).
-E a cadelinha, como está? -  perguntou Antônio.
-A pobrezinha já se sente toda minha – respondeu Maria. -E eu já me sinto a sua única dona.
O que Maria quis dizer – nas entrelinhas – era que o animal havia encontrado uma mãe, mas faltava-lhe um pai.
Antônio, às vezes, era limitado para entender algumas sutilezas.
Quando o garçom chegou com as bebidas, Maria lançou um olhar em direção ao outro lado da rua. Notou que outro cachorro tentava atravessá-la. Ela sorriu e pensou: “Será que teremos outro socorro a prestar?” Porém, desta vez, não se tratava de um animal tão corajoso.
-Encontrou um nome para a sua mais nova companheira? – quis saber Antônio.
-Sim! Seu nome agora é Lilica.
Subitamente, como num susto, Antônio engasgou-se com um gole de cerveja. E ficou feliz ao se dar conta de que não se tratava de um susto de medo, mas sim de contentamento. Neste momento, ele compreendeu que não era mais sozinho.
Maria fora mais sagaz. Já sabia desde o primeiro contato.
Se o casal encontrou a felicidade? Entrego essa tarefa a cada leitor. E aviso de antemão: cada um que se responsabilize por seu desfecho.
Avaliem os contextos e sejam cuidadosos.


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Éd Brambilla. ALMaS DÍSPaReS. Pequenos Romances. 2015.

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