Apresentações:
Antônio Descrente & Maria Esperança
Trata-se de um casal incomum: ela, que aos trinta e seis anos de idade, nunca havia experimentado o amor que paralisa e faz com que a vida se mostre cheia de novidades, encontrou nele a esperança da plenitude; ele, que aos trinta e oito anos, vivera apenas de amores fugazes, encontrou nela a falta de aviso prévio do amor que tantos vislumbram. O fato é que de quando em quando ambos mergulhavam em suas entranhas em busca de novas emoções. No entanto, o ar lhes faltava e os dois voltavam à superfície envoltos apenas por prazeres efêmeros.
Mergulhar
no profundo do que se é e buscar o que verdadeiramente se quer exige
esforço de uma retidão precisa.
O
nome da mulher poderia ser o nome de qualquer mulher sonhadora e
esperançosa: dou-lhe o nome de Maria Esperança; ele, que até então
não acreditava no amor, batizo-lhe agora com o nome de Antônio
Descrente.
Maria
Esperança, quando criança, vivia de pequenos sonhos roubados de
histórias fictícias dos livros que lia. Quanto aos sonhos grandes,
ela tinha pavor de tomá-los para si. Faltava-lhe ambição. E havia
nela o inoportuno medo de parecer criminosa demais, fato que lhe
arrepiava toda, como se entre o roubar pouco e o roubar muito
houvesse uma extraordinária misericórdia. Já era difícil para a
menina viver os pequenos sonhos, e, como julgava sua alma pequena
demais, não cabia ali uma história de grandes acontecimentos.
Antônio
Descrente, por conta de severas complicações de gestação, nascera
de um parto cuja mãe oscilava entre um suspiro de vida e outro de
morte. Se Antônio fora presenteado com a vida, foi por pura
incondicionalidade do amor materno. E como castigo, despercebido no
silêncio daquilo que não se ousa procurar uma resposta, teve a
sorte de sua criação lançada a um pai incorrigivelmente machista e
mulherengo.
A
sorte, muitas vezes, é de uma sordidez de dar nó na garganta; ela é
quem faz as escolhas, apesar de todo o livre arbítrio que se julga
ter. Quando adolescente, o imberbe menino olhava para as meninas
através de olhos lubrificados com testosterona; vislumbrava a fêmea
e não a mulher.
O
rapaz atravessara o auge da juventude acreditando que poderia dar
prazer a toda mulher que lhe mostrasse interesse. E nesta crença,
amarrada com nó-de-marinheiro,
em dar o que nunca teve, não lhe cabia na essência que sofria de
uma miserável pobreza de felicidade. Era involuntariamente
solitário.
A
solidão mais triste é aquela que habita na alma com uma
inconsciente vontade do que se quer. E o invisível do que se quer
prolonga-se em flagelo de punição. Antônio não tinha consciência
do flagelo que carregava em procissão para pagamento de promessa não
feita.
Capítulo II
Maria
“rebelada”
Em
uma tarde de domingo – de uma primavera esquecida –, Maria
sentiu, num repente de surpresa inevitável, um comichão a lhe
corroer o caráter. Brotava ali uma necessidade alimentada com
madeira seca que precisava ser consumida através do que há de mais
carrasco no fogo: decidira tornar-se uma criminosa digna das
honrarias que somente os que sentem a consumição do amor poderiam
compreender. Era o tardio momento de viver uma história em cores,
tons e sons a enveredar o mais secreto de seus desejos. Foi então pela primeira vez ao cinema. Os livros obrigavam-na a compor
cenários. E agora ela queria o cenário pronto. Era hora para um
assalto em grande estilo; e o prêmio era a essência da heroína
de um cordel. Maria idolatrava romances recheados de amores
impossíveis que enfrentavam obstáculos tortuosos até alcançar a
possibilidade.
A
súbita obsessão em tomar posse de história alheia era, para Maria,
uma espécie de fuga das ciladas do amor. Filha única, de pais que
mal se amavam, crescera ouvindo da mãe: “Jamais confie no amor de
um homem, minha doce menina!” Daí o fato de tornar-se - desde pequenina - uma ladra de amores com finais felizes.
Maria
debulhou-se em lágrimas logo nos primeiros instantes do filme. O
choro saía lento, de um sofrimento soluçado. A expressão de seu
rosto era de uma gravidade de espera de notícia de falecimento de
quem se quer muito. Eis que ela perdera o intangível que reside na
sensação daquilo que se vive pela primeira vez. Era novidade
demais. Estava no cinema e perdera-se em não se dar conta de que
estava. Fora inóspita para si mesma. E a crueldade do tempo consiste
no fato de não voltar atrás. É uma regra necessária para que toda
história não se torne repetitiva demais. Cada um que se preocupe em
cuidar do próprio tempo.
Capítulo III
Antônio
& Maria: Insights
Numa
rua estreita, ornada dos dois lados com casas estreitas e apinhada de
pessoas de mentalidades estreitas – e tudo o que existe de mais
estreito na busca do prazer comprado –, estava Antônio. Ele entrou
numa dessas casas. O espaço, com uma iluminação opaca e todo
atordoado com o branco ofendido da fumaça de cigarros, parecia mais
um crematório. Ali, no balcão do puteiro, Antônio sentou-se num
banco de vime, cujo estado denunciava o fim de seus dias. Ele
espalmou as mãos sobre o balcão, ainda cheio de copos sujos
esquecidos por assíduos clientes - jovens e velhos, fossem eles
solteiros ou casados. A sua frente, numa prateleira inteira
abarrotada com sonhos de ébrio, bailavam, libidinosas, garrafas de
todas as cores e formatos.
Antônio
estava no segundo copo de uísque e, quando pensou em pedir o
terceiro, uma moça, com os cabelos de um ruivo mentiroso e um
vestido que a difamava logo no primeiro instante, cumprimentou-o toda
lânguida. Também ela queria um copo de uísque, que pretendia pagar
com sua companhia. Ele, de súbito, compreendeu e aceitou o feudal da
situação. Antônio, a esta altura de sua miserável vida amorosa,
sentia-se desanimado demais para as conquistas batalhadas e
merecidas. Seria este fato um sinal de que ele começava a perceber a
miserável falta daquilo que nunca havia experimentado, o amor?
Em
seu modesto quarto de pensão, Maria estava em dúvida sobre qual
vestido usaria em seu aniversário de trinta e seis anos. "Preto
ou verde?" – pensava consigo mesma. Para dizer uma verdade toda
banhada em ofensa, não importava a cor do vestido. Ela estaria só.
Mais uma vez só. Escolheu o verde. Todo aniversário era o mesmo
ritual: arrumava-se toda, fitava-se no espelho, procurava por
possíveis novas rugas, apanhava a bolsa e ia comemorar a data em
companhia de algum novo herói cinematográfico. Quando chegou à
porta do cinema e se deparou com o cartaz do filme anunciado, um
lampejo de memória indesejável atordoou-lhe a mente: já tinha
vivido aquele amor. Maria, em toda a sua vida, jamais repetira um
romance, e, naquele momento, pela primeira vez, não sabia o que
fazer. Seria o prenúncio da urgência de morte do abstrato em prol
do concreto?
Capítulo IV
Cupido
Antônio
acordou no começo da tarde ainda com o cheiro das coisas estreitas
da noite passada. Banhou-se na intenção de lavar seus pecados,
vestiu-se com discrição e decidiu que naquela noite encontraria a
sua outra metade nesta vida.
Do
outro lado da vida de Antônio, estava Maria, que, neste mesmo dia,
acordara cedo, como de costume. Também ela se banhara – mas sem
intenção de lavar “pecados da carne”; estes Maria não os tinha.
Já
era noite. As luzes artificiais, aos poucos, emprestavam a sua magia
à cidade. Antônio recostou-se num banco de uma pequena praça em
frente a uma catedral e se pôs a meditar sobre o que queria para o
futuro.
Do
outro lado da rua, Maria esperava por um táxi. Estava segura de que
naquela noite passaria a ser mais “Maria” e menos “Esperança”.
Acontece
que nem tudo o que se quer acontece como se quer – o que pode ser
uma deliciosa surpresa.
Uma
cadelinha, já cansada de sua condição – não de canina, mas de
miséria –, decidiu atravessar a rua; provavelmente em busca de uma
novidade que lhe mudasse o destino. E essa novidade havia de ser
encontrada do outro lado. O atropelamento fora inevitável. A pancada
não foi tão forte, apenas o suficiente para que a canina perdesse
os sentidos. Maria – toda comovida por natureza – correu em
direção à pobrezinha porque sempre amara os bichos. Sentou-se na
calçada, retirou da bolsa uma garrafa com água e banhou a cabeça
da bichinha. A cadelinha levantou a cabeça e sorriu de gratidão por
Maria.
-Ela
ficará bem.
Maria
ergueu os olhos para ver de onde vinha a voz. Deparou-se com Antônio.
Naquele
momento a mulher teve a certeza de que tudo ficaria realmente bem.
Antônio ofereceu-lhe ajuda. Disse-lhe que morava a menos de
quinhentos metros dali. Maria aconchegou a cachorrinha no colo e
levantou-se com a ajuda de Antônio. Os dois se apresentaram.
Alguma
coisa no olhar de ambos dava a certeza do que estavam procurando.
Capítulo V
Mãos
Entrelaçadas e Corações Palpitantes
Já
em sua casa, Antônio pegou um pouco de algodão, uma pequena vasilha
com água quente e um frasco de mercúrio. Levou tudo para Maria, que
o esperava na sala com a cachorra. Esta também tinha um brilho
diferente no olhar. Depois dos primeiros socorros, Maria pediu a
Antônio que trouxesse um pouco de alimento para a acidentada.
-Repare
como a pobrezinha come cheia de aflição – disse Maria toda terna.
Antônio
sorriu comovido.
Algum
tempo depois, Maria assustou-se com as horas e resolveu que iria
embora. Antônio convidou-a para um passeio no dia seguinte.
Ela assentiu com a cabeça.
Durante
a madrugada, que se fizera eterna nesta noite, Antônio e Maria, cada
qual em seu canto, suspiraram possibilidades que emergiam de sutis
faíscas de desejos.
Na
tarde do dia seguinte, num barzinho de esquina, lá estavam Maria e
Antônio – não era o lugar mais sofisticado da cidade, mas o lugar
onde nasceria a felicidade de duas almas díspares e prontas para o
amor.
Maria
estava tão cheia de futuro que aquele lugar imbuíra-se da mais pura
e bela magia.
Antônio
chegou com um atraso de dez minutos. Sentou-se de frente para Maria e
estendeu suas mãos em busca das dela. Entrelaçaram-se as mãos
(trêmulas, suadas, quentes, esperançosas).
-E
a cadelinha, como está? - perguntou Antônio.
-A
pobrezinha já se sente toda minha – respondeu Maria. -E eu já me
sinto a sua única dona.
O
que Maria quis dizer – nas entrelinhas – era que o animal havia
encontrado uma mãe, mas faltava-lhe um pai.
Antônio, às vezes, era limitado para entender algumas sutilezas.
Antônio, às vezes, era limitado para entender algumas sutilezas.
Quando
o garçom chegou com as bebidas, Maria lançou um olhar em direção
ao outro lado da rua. Notou que outro cachorro tentava atravessá-la.
Ela sorriu e pensou: “Será que teremos outro socorro a prestar?”
Porém, desta vez, não se tratava de um animal tão corajoso.
-Encontrou
um nome para a sua mais nova companheira? – quis saber Antônio.
-Sim!
Seu nome agora é Lilica.
Subitamente,
como num susto, Antônio engasgou-se com um gole de cerveja. E ficou
feliz ao se dar conta de que não se tratava de um susto de medo, mas
sim de contentamento. Neste momento, ele compreendeu que não era
mais sozinho.
Maria fora mais sagaz. Já sabia desde o primeiro contato.
Maria fora mais sagaz. Já sabia desde o primeiro contato.
Se
o casal encontrou a felicidade? Entrego essa tarefa a cada leitor. E
aviso de antemão: cada um que se responsabilize por seu desfecho.
Avaliem os contextos e sejam cuidadosos.
Avaliem os contextos e sejam cuidadosos.
---------------------------------------- FIM ----------------------------------------
Éd Brambilla. ALMaS DÍSPaReS. Pequenos Romances. 2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário