Éd Brambilla
Apresenta:
Xipocos
Um mini-romance gótico
2014/2015
Sumário
De
Autor
para Leitor, p. 3
Capítulo I – João Catatumba e a Árvore Imorredoura, p. 4
Capítulo II – Uma lição de morte com Maria Múmia, p. 7
Capítulo III – A beleza d’Alma de Alma Luz, p. 12
Capítulo IV – O amor poético de Arlindo Caveira & Ana Cadáver, p. 15
Capítulo V – O ProjetoTtumbiliário de José Sarcófago, p. 18
Capítulo VI – Ana Cadáver & Ana tumba: um acerto de contas, p. 21
Capítulo VII – Um trabalho para Julião Presunto, o designer de corpos, p. 24
Capítulo VIII – As limousines de Juca Cova, p. 28
Capítulo IX – Uma ciranda de luz para Ana Cadáver, p. 31
Capítulo X – Todo novo despertar é sempre repleto de novas esperanças, p. 33
Capítulo I – João Catatumba e a Árvore Imorredoura, p. 4
Capítulo II – Uma lição de morte com Maria Múmia, p. 7
Capítulo III – A beleza d’Alma de Alma Luz, p. 12
Capítulo IV – O amor poético de Arlindo Caveira & Ana Cadáver, p. 15
Capítulo V – O ProjetoTtumbiliário de José Sarcófago, p. 18
Capítulo VI – Ana Cadáver & Ana tumba: um acerto de contas, p. 21
Capítulo VII – Um trabalho para Julião Presunto, o designer de corpos, p. 24
Capítulo VIII – As limousines de Juca Cova, p. 28
Capítulo IX – Uma ciranda de luz para Ana Cadáver, p. 31
Capítulo X – Todo novo despertar é sempre repleto de novas esperanças, p. 33
De autor
para leitor
Xipoco
é uma palavra originária de Moçambique/África, cujo significado é: alma penada que vagueia sem destino;
fantasma. Xipocos é um conto mergulhado nas inferências de mundo,
principalmente nas metafísicas; um subterfúgio para falar de forma poética,
filosófica, e, principalmente, bem-humorada, de um dos maiores medos do ser
humano: a Morte. Eu, o autor, busquei na formação do contexto da trama – ora
através de neologismos (como o nome da cidade onde se passa a história, Defuntópolis), ora através de elementos do imaginário comum (em se tratando da
tão temida morte) e ora através de algumas intertextualidades literárias –,
transmitir mensagens de alento para que o fantasma
do medo de morrer seja menos austero e menos inquiridor. A inspiração para
a construção de Xipocos se deu através de algumas linguagens literárias de
grandes valores estéticos: desde o Realismo Fantástico – ou Realismo Mágico –,
estilo que tem como um de seus precursores o notável escritor colombiano
Gabriel Gárcia Márquez, passando pelo movimento gótico retomado durante o
Romantismo, até o movimento expressionista alemão. Somente através destes
estilos, Xipocos ganhou liberdade para serpentear entre os mundos físico e
metafísico, tão marcados e ressignificados
na existência humana. Depois de um tênue contato com os xipocos Arlindo Caveira, Ana Cadáver, Ana Tumba, Alma Luz, João
Catatumba, José Sarcófago, Julião Presunto, Juca Cova, Maria Múmia, Morta da
Silva (a dona Mortinha), Lua
Sequelada, o pequeno menino Bernardo, Sombrito (o fiel cãozinho escudeiro de
Arlindo Caveira) e Zuluzinho (o fiel fantasminha
de estimação de Alma Luz), dificilmente o leitor ficará insensível à sua
própria essência almática.
Capítulo
I
JOÃO CATATUMBA E A ÁRVORE IMORREDOURA
Conta
uma lenda (ou tudo não passaria de um sonho?) que num lugar muito além da
imaginação de todos os viventes, existe uma cidade-cemitério chamada Defuntópolis. Lá, bem ao pé de uma
imensa árvore encantada, seus habitantes, os além-túmulos, morrem tranquilamente num eterno carpe diem.
Uma
grande árvore de tronco muito grosso e de folhas vermelhas como o sangue,
batizada de A Árvore Imorredoura, é a
responsável pela transmutação dos viventes para o mundo dos além-túmulos. A
árvore também é chamada carinhosamente de o
grande útero gerador da vida eterna pelos despreocupados defuntópolenses. Os frutos da Árvore Imorredoura são do tamanho
natural de cada vivente destinado a morrer
em Defuntólis. Cada fruto é um
abençoado útero a aninhar uma alma. E o tempo do vivente – que no fruto habita
como uma larva no casulo,
inconsciente da morte – é contado a partir de sua idade cheia a ser cumprida no
mundo dos vivos até a extinção de sua vida terrena. É quando ocorre a grande e
mágica trasladação: o parto para a morte. O fruto, a essa altura, já tem o seu
invólucro todo trincado, feito ovo que vai dar à luz um pinto.
Ao
pé da grande árvore-mãe, um guardião
de almas, João Catatumba, está sempre alerta para uma nova morte. É ele o
grande parteiro dos além-túmulos. João também é responsável por recepcionar os
recém-mortos no novo mundo. Com muito carinho e compreensão, o guardião explica
detalhadamente a todos que ali chegam sobre como será o dali por diante.
Cada
novo morto tem direito a uma certidão de óbito defuntópolense, que é expedida gratuitamente pelo Cartório Oficial
da cidade, de nome Defuntus Adjuntus,
cuja serventuária responsável é dona Maria Múmia. Além da responsabilidade do
cartório, Maria Múmia também é responsável pelo curso intitulado Dies Aeternus, ministrado para os
recém-chegados, ininterruptamente, durante os seus primeiros trinta dias de
morte. A memória de vida terrena de cada novo além-túmulo vem completamente
apagada do antigo mundo. O curso gerido pela serventuária é crucial para a
adaptação de quem faz a transmutação.
João
Catatumba, sentado num caixãozito de
criança-defunta, aguarda a chegada de uma nova moradora. Ele já sabe que se
trata de uma jovem mulher de vinte e dois anos de idade.
-Pobre,
menina! Essa moça parece que não se deu muito bem lá no mundo dos viventes...
Tão nova – lamenta o guardião. -Melhor para os solteiros daqui! – comemora.
João
confere mais uma vez a nova certidão de óbito em suas mãos:
-A-N-A
C-A-D-Á-V-E-R – soletra o defunto, e pensa consigo mesmo: “Hum... Já temos aqui
uma Ana Tumba... Serão parentes?” – ao mesmo tempo em que começa a folhear um
pequeno relatório anexado à certidão da moça.
Enquanto
João vasculhava o relatório geral anexado à certidão de Ana Cadáver, um barulho
de madeira estalando o desconcentrou. Era o rompimento do fruto da nova morta.
Rapidamente, o parteiro lançou mão de sua rede
pega-morto, uma invenção sua, e correu para debaixo da árvore imorredoura, a fim de aparar o cadáver da nova defuntinha.
SPLASH! - foi assim o som do corpo
batendo contra a rede. João olhou para a moça-cadáver, e, com olhos de
encantamento, fez suas conjecturas: -Meu Deus, que moça gloriosa!... Tão
azuladinha!... Os cabelos tão louros! – e sentenciou: -É ela, agora, a mais
linda defunta a morrer por estas
bandas – e, num gesto impensado, buscou os lábios da mais nova defuntópolense.
Ana
Cadáver, ao abrir seus dois enormes olhos arredondados e azulados,
completamente confusa, desesperou-se com a cena.
-Aiii...
Socorrro!!! Quem é você?! – inquiriu a morta, fitando os olhos moribundos de
João.
-Não
se assuste, senhorita... Meu nome é João Catatumba... Vou explicar sobre tudo
isso que está acontecendo com você.
Ana
Cadáver, então, correu os olhos-de-morta
pelos arredores: viu a árvore imorredoura,
o caixãozito de criança-defunta e
alguns estranhos transeuntes que vigiavam a cena. Depois, tentando escapar da
rede pega-morto de João Catumba,
perguntou completamente zonza:
-Que
xicuembo é esse?!
VOCÁBULÁRIO
E EXPRESSÕES:
1. Xipoco: palavra originária de
Moçambique/África, cujo significado é fantasma;
2. Imorredouro: aquilo que é
eterno, que não morre;
3. Carpe Diem: frase em Latim de
um poema de Horácio, e é popularmente traduzida como ‘colha o dia’ ou ‘aproveite o momento’;
4. Dies Aeternus: Latim, ‘dias eternos’.
5. Xicuembo: palavra originária de
Moçambique/África, cujo significado é feitiço.
NEOLOGISMOS
‘XIPOCOS’ DO AUTOR:
6. Defuntópolis: nome da cidade
onde se passa a história;
7. Defuntópolense: gentílico de
quem nasce em Defuntópolis.
Capítulo
II
UMA LIÇÃO DE MORTE COM MARIA MÚMIA
João
Catatumba, ao mesmo tempo que desfazia as amarras de sua rede pega-morto para libertar Ana Cadáver,
aproveitou a liberdade da boca para falar. O paciente defunto-guardião
recomeçou, pela infinita vez, a eterna ladainha da explicação da vida
além-túmulo:
-Não é feitiço o que
você está presenciando, filha!... Trata-se do tão falado mistério que existe
entre o céu e a terra, aquela tal coisa
que a vã filosofia dos viventes jamais conseguirá imaginar.
-Isso é de Shakespeare – lembrou Ana.
-Sim, querida... A
máxima pertence a ele... Mas a busca pela resposta já vem muito antes das palavras
desse moço... Ele só fez eternizar a angústia.
-Mas, responda-me,
João: é este lugar um dos nove níveis do purgatório descritos por Dante Alighieri na sua Divina Comédia?
´ -A
alegoria desse moço tem lá seus sentidos, querida... Mas em vez de nove níveis
para cima, até o cume do sonhado paraíso, e nove níveis para baixo, até o mais
profundo recanto do inferno, o que existe são apenas o Aqui e o Acolá.
-Aqui e Acolá? Não entendi
muito bem, João.
-O Aqui, Ana, é o espaço que compreende todas as cidades onde morrem os além-túmulos... Você estava
predestinada a morrer em Defuntópolis, por exemplo... Um nível
abaixo está o Acolá, onde habitam os
viventes.
-E por que o nível do
Aqui não é uma cidade única? – quer
saber a curiosa e perguntadeira Ana Cadáver.
-Tudo no plano do Aqui é exatamente distribuído como no
plano do Acolá... A Morte, menina, é
tão somente um espelho da Vida.
-Ai, minha cabeça!
Estou confusa, João... É muita informação para absorver.
-Não te preocupe,
minha menina confusa... Já disse sabiamente Clarice Lispector, agora também uma
além-túmulo: “Não se preocupe
em entender; viver ultrapassa todo entendimento...” Basta pensar na inversão de sua
máxima.
-Vou fundamentar-me
nisso, amigo... Mas, e agora, o que tenho de fazer? – questionou a defuntinha com
um semblante todo emudecido. –Não me lembro de absolutamente nada do momento
anterior deste meu estranho nascimento.
-Aos poucos, Ana,
você se lembrará... Mas somente do essencial – respondeu João, e corrigiu a
dúvida de Ana: -Não é verdade o que você disse a respeito de não se lembrar de
absolutamente nada do antigo mundo... Você não esqueceu a sua língua pátria,
por exemplo.
Por um instante, a
moça aquietou a alma, e, depois de um pensamento, olhou para João e se desfez
em gargalhadas. O defunto-parteiro, então, entendeu que Ana Cadáver já tinha
vindo pronta. Tratava-se de uma alma iluminada.
Algum tempo depois,
João e Ana seguiram para o Cartório Defuntus
Adjuntus. Lá, dona Maria Múmia estava à espera de sua mais nova aprendiz.
Ana teria a sua primeira lição do curso Dies
Aeternus.
-Muito obrigada,
amigo Catatumba! – agradeceu a gentil senhorita Cadáver na soleira da porta do
cartório.
-E não se esqueça,
Aninha: moro na tumba 32, uma meio esverdeada, na Ruela Dos Sonhadores...
Esperarei ansiosamente uma sua visita... – disse João. –Quero te mostrar um
livro precioso que guardo a sete chaves – complementou.
Quando Ana Cadáver
finalmente entrou na gigantesca tumba onde funciona o cartório, um retrato numa
das paredes chamou-lhe a atenção. Maria Múmia, que estava um pouco atrás da
moça, adivinhou os olhares da jovenzinha e adiantou:
-O nome dele é
Arlindo Caveira... É filho único de dona Morta da Silva, a dona Mortinha... Sou a madrinha de rebatismo
dele.
Ana, num pequeno
sobressalto de susto, voltou-se para dona Maria Múmia e, curiosa, perguntou
exclamativamente:
-Rebatismo?!
-Sim,
querida... Todos que aqui chegam precisam ser rebatizados na sua nova condição.
-Eu também serei
rebatizada, dona Maria Múmia?
-Claro que sim, meu
bem... Mas somente depois que você encontrar uma madrinha de alma.
-Eu é que escolho
essa madrinha?
-Não... A escolha é
feita entre as essências almáticas
que habitam cada um de nós... Elas se reconhecem num momento de pura sintonia.
Pensativa, Ana
desviou novamente o olhar para o retrato de Arlindo.
-E... Bem... Esse
moço... – mas Ana não conseguiu dizer o que queria dizer. Faltaram-lhe as
palavras propícias.
-Ele é defunto
solteiro, sim – adivinhou novamente Maria Múmia.
Espantada, Ana
Cadáver arregalou os grandes olhos azulados para a serventuária. Maria Múmia
achou graça e carinhosamente disse:
-Faço muito gosto em
ser sua meio-sogra.
Ana, com sagacidade,
compreendeu, nas duas conversas que participara até ali, naquele novo mundo,
que as coisas funcionavam sem muitas complicações. A moça começava a sentir uma
alegria inexplicável na morte. E admirava a si mesma por sua tão rápida
adaptação. Ana Cadáver, então, conscientizou-se: já havia tido a sua primeira
grande lição de morte.
Maria Múmia, sem mais
a dizer, estendeu à moça um pedaço de papel, onde se lia: “Ruela da Luz da Lua,
25, tumba verde-amarela”. E orientou:
-Procure por Lua
Sequelada... Ela tem uma vaga em sua tumba... Você ficará lá hospedada até que
seu sepulcro definitivo seja providenciado.
-Sim, senhora, dona
Múmia... Muito obrigada pela primeira lição.
Maria Múmia nada
respondeu em agradecimento, apenas recomendou:
-Esteja aqui amanhã,
querida, sem falta!
Ana desejou saber
mais sobre Arlindo, porém, não encontrou forma de buscar assunto. Maria Múmia
compreendeu mais uma vez a face iluminada da defuntinha, mas deixou o curso
natural das coisas no comando.
“Ruela da Luz da Lua,
25” – dizia Ana em pensamento enquanto caminhava por entre jazigos de todas as
cores e tamanhos. -ACHEI! – gritou repentinamente. –Tumba
verde-amarela – e olhou por todo ao redor. -Não vejo outra – concluiu.
Ela ia bater à porta
da tumba abrasileirada quando escutou uma voz:
-Ana Cadáver?... Você
é Ana Cadáver?
Ana virou-se e ficou
encantada com o que viu: uma defunta toda iluminada de luz de lua. Faltava-lhe
todo o braço direito. Seus cabelos assemelhavam-se a longas cordas de amarrar.
A defunta tinha olhos pesarosos de uma saudade que já nem ela sabia do que ou de
quem era.
-Lua Sequelada! –
exclamou Ana Cadáver. -Só pode ser você: o luar que te brilha... A falta do
braço direito...
-Sim, Ana, sou Lua
Sequelada – respondeu a defunta maneta enquanto ia puxando para dentro de sua
morada a defunta sem-tumba. –Venha comigo,
vou te mostrar o teu lugarzinho provisório.
Dentro da tumba – na
verdade uma kitchetumba –, as novas
amigas se puseram em reconhecimento de almas enquanto saboreavam um denso
cálice de formol oferecido por Lua.
Ana, um pouco zonza
com a estranha bebida, e um pouco acanhada, perguntou sobre Arlindo.
-Arlindo, o lindo? –
respondeu Lua toda interessada.
-Já que tudo aqui é às claras, vou logo te confessando, Lua:
desde o primeiro momento que botei os meus olhos-de-morta
no retrato de Arlindo, sinto meu estômago repleto de borboletas-de-amor a esvoaçarem dentro do meu estômago.
-Não são borboletas-de-amor, querida defuntinha.
-Não?! São o quê,
então?!
-São vermes -
declarou Lua com toda a naturalidade de quem já nem se lembra mais da data do
próprio óbito.
-Vermes?! –
horrorizou-se Ana Cadáver.
Lua, então, revela
para a amiga:
-São enormes vermes
carniceiros a te devorarem o estômago... Você está morta, esqueceu?!
Ana Cadáver,
completamente estupefata com a verdade óbvia, deixou-se cair em desmaio sobre a
cama-caixão de Lua Sequelada.
Capítulo
III
A BELEZA D’ALMA DE ALMA LUZ
Dentro
da kitchetumba de Lua Sequelada, um
delicioso cheiro de luz pairava no ar. O cheiro vinha do forno do fogão almático da morta. Lua assava um
abençoado bolo de luz, sua receita
secreta. Ana Cadáver, aos poucos, recobrou os sentidos, talvez despertados pelo
cheiro agridoce (que tem a luz) vindo do bolo.
-Lua,
onde está você? - perguntou a defuntinha ainda um pouco desorientada.
-Ah,
finalmente a minha amiguinha enamorada despertou! - respondeu prontamente a
outra.
-Desmaiei
porque fiquei assustada com os vermes que devoram estômagos.
-Não,
querida, você desmaiou de fome!
-Fome?!
Também aqui sentimos fome, Lua?
-Sim...
Mas é fome de luz espiritual... Por isso preparei um bolo de luz pra você, meu
bem.
-Oh,
obrigada, minha irmãzinha!
-Muito
bem, Ana, você está certa... No Aqui,
somos todos irmãos de alma.
Ana
e Lua comeram demoradamente metade do bolo. Os semblantes das moças emanavam
pequenas estrelas brilhantes a cada pedacinho que se misturava às suas
essências metafísicas.
-Sinto
uma leve comichão a cada pedacinho desse bolo – suspirou Ana.
-É
a paz a percorrer o teu interior, querida.
-Nunca
imaginei que um dia eu fosse me alimentar de paz – disse Ana cheia de encantamento.
Lua
Sequelada, ao término da refeição, serviu-se de mais um cálice de formol. Ana
recusou a oferta da amiga. Em pé, na pequena grade-janela de sua morada, Lua
avistou João Catatumba à porta do sepulcro de uma além-túmulo de nome Alma Luz.
-Sinto
que teremos novidades por estas bandas – professou a defunta maneta. -Nosso
parteiro da vida eterna está neste momento conversando com Alma Luz.
-Quem
é Alma Luz, Lua?
E
a morta se pôs a descrever a beleza d’alma de Alma Luz:
-É
ela uma das almas mais leves que já vieram para este mundo... Alma é uma
fotógrafa de nossas essências almáticas...
Há muito que essa nobre além-túmulo almeja a maternidade de um filhinho para
alegrar-lhe a morte.
-E
João Catatumba vai lhe trazer esse filho?
-Sim...
João Catatumba jamais bate à porta de uma morada sem uma missão iluminada.
Um
silêncio doce tomou conta das duas amigas. A brisa morna que soprava do lado de
fora da tumba parecia trazer um pouco do diálogo entre João e Alma para os
aguçados ouvidos de Lua Sequelada.
Na
soleira da porta do jazigo-capela de Alma Luz, João Catatumba deu a boa nova à
velha amiga de jornada:
-Ele
está chegando, dona Alma! – anunciou o guardião.
-O
meu Bernardo, João? Você tem certeza?
-Sim,
iluminada amiga... Bernardo Luz... Está bem nítido na certidão de óbito que
dona Maria Múmia entregou-me hoje de manhã.
-Oh,
meu amigo... Sinto um amor maternal tão grande a invadir a minha essência... É
como se meu ventre fosse ele próprio o casulo de meu já há muito amado e esperado
Bernardo.
-Sim,
Alma... Você é a verdadeira gestante de Bernardo... A essência dele nasceu e
cresceu alimentada por teus desejos maternais... É um filho da luz... Da tua
luz.
Dito
isso, os dois amigos seguiram para debaixo da Árvore Imorredoura. Alma, com olhos marejados de cálido orvalho
(composição das lágrimas de quem está morto), pôs-se a esperar, bem debaixo do
pequeno casulo de criança, a chegada de sua alminha de luz. Alguns incontáveis
minutos depois (no além-mundo não existe tempo contante), o pequeno casulo, em vez do costumeiro trincamento da casca, transfigurou-se
gradativamente em tonalidades de luz energética, até que esta desaparecesse
completamente. E deixou à mostra um pequeno e frágil menino de três anos de
idade – anos estes contados apenas no mundo dos viventes.
Capítulo
IV
O AMOR POÉTICO DE ARLINDO CAVEIRA
& ANA CADÁVER
Pela primeira vez em sua jornada de
parteiro-encantado, João Catatumba não fez uso de sua rede pega-morto, tampouco precisou aparar a chegada de um além-túmulo.
Fora a própria Alma Luz quem recebeu e aparou o recém-mortinho em seus braços iluminados.
-Bernardo,
meu filho d’alma tão esperado, mamãe cuidará de você como quem cuida
diariamente da própria fé – sussurrou a recém-mamãezinha
no ouvidinho direito do pequeno menino, todo ele molhado de luz, o sagrado
líquido amniótico de quem se transfigura.
-Alma,
querida... Bernardo precisa descansar – advertiu João. -Leve-o para a sua
manjedoura almática, tão
minuciosamente carpintada por suas
mãos abençoadas e cheias de uma sua real vontade, energizada por sua luz de
amor incondicional.
Seguindo
a recomendação do defunto-amigo, Alma pôs-se a caminhar por uma estreita
alameda florida. Bernardo, aninhado em seu colo – este todo remodelado pelo
mais sagrado cuidado de mãe –, ainda dormia. João permaneceu à sombra da Árvore Imorredoura, contemplando aquele
momento de simbiótico amor. De volta à sua morada – agora toda banhada de nova
alegria e perfumada de esperança –, Alma luz sussurrava cantigas de bem-querer
para embalar o repouso do pequeno menino iluminado.
Num
pequeno jazigo amarelo-desbotado, vizinho de Alma Luz, um belo rapaz – de
semblante descontente, como se esperasse uma felicidade para adoçar a morte –
observava, com o coração todo emocionado, a chegada da nova e pequena família
da almática vizinha de luz. É ele
Arlindo Caveira, filho de dona Morta da Silva, a dona Mortinha, e afilhado de dona Maria Múmia, de quem já falei no
início desta fantasmagórica narrativa.
-Que
a força do amor transcendental esteja sempre a enlaçar vocês, meus queridos
amigos de jornada – disse baixinho e respeitosamente o moço.
De
repente chegou aos ouvidos de Arlindo um barulhar
de folhas secas, como um gemido de revolta a desaprovar o pisotear de pés
incautos. O moço olhou para o pequeno horizonte: congelou-se. Era Ana Cadáver,
toda cambaleante, toda se esbarrando em jazigos e vasos de flores esquecidos.
Ela vinha acompanhada de Lua Sequelada, que trazia à mão mais um de seus
cálices de formol.
Foi
assim o breve e para sempre enlaçar
de almas entre Arlindo & Ana:
Os
dois foram se achegando; o ao redor,
aos poucos, despareceu de suas vistas; o espaço foi tomado por uma fina névoa;
Arlindo olhou profundamente nos olhinhos arredondados e azulados de Ana e teve
a tão esperada resposta: a felicidade que adoçaria a sua morte, enfim, estava a
contemplá-lo; e ele a ela; Ana, com o estômago repleto de borboletas-de-amor (agora ela tinha certeza de que não eram vermes
devoradores de gente morta), respirava e transpirava pelos poros a essência da
paz absorvida através da degustação do bolo-de-luz
da alma-amiga Lua Sequelada. E mais uma vez Ana Cadáver teve outra certeza,
e a cantou nos ouvidos de Arlindo:
-Foi
por isso que eu vim antes do tempo, meu amor: escutei o teu desassossego
d’alma. Aquieta, agora, o teu coração, pois o meu já agora esqueceu o que é
saudade.
O
rapaz, completamente enfeitiçado de reminiscências, nada precisou responder.
Apenas tomou a moça nos braços e beijou-lhes os lábios úmidos e cinzentos.
No
alto, a lua (não a defunta Sequelada, entendam bem), sarapintada de estrelinhas
brincalhonas ao seu redor, embalava o reencontro de dois além-túmulos que se
precisam desde um tempo que a imaginação jamais poderia acompanhar.
Depois
do beijo, ainda sem voz para a amada, Arlindo retirou um pequeno papel do
bolso, apanhou do ar um pequeno vaga-lume, e, com o traseirinho luminoso do pequeno inseto, desenhou um singelo poema
para Ana; entregou-o à defuntinha enamorada. Tremeluzentes, os olhinhos de Ana
alimentavam-se, agora, não da paz que existe no bolo-de-luz de Lua Sequelada, mas do amor almático que brota das palavras de versos sinceros. A moça, toda
ela bailando no centro de uma ciranda de querubins, leu o pequeno poema do amado
em serena voz cantante:
Olhei profundamente
Nos olhinhos de Ana.
O azul olhar dela,
Ah, Deus! Não me engana:
É ela o meu amor,
E eu a sua chama.
Amor, Arlindo.
Capítulo
V
O PROJETO TUMBILIÁRIO DE JOSÉ SARCÓFAGO
Depois de selado o amor
de Ana & Arlindo com versos tão puros, ambos se despediram com olhares de
promessas; jantariam mais tarde na tumba de Arlindo e sua mãe, dona Mortinha. As duas moças-defuntas
seguiram para a tumba-escritório de José Sarcófago, o empreendedor responsável
pela aquisição de túmulos em Defuntópolis.
Pouco tempo depois, Lua
deu três toques na tampa da tumba do empreendedor tumbiliário.
-Ah, mas quem é morta sempre
aparece! – disse sorridente o simpático morto das tumbas próprias.
-José, esta é Ana
Cadáver – disse a morta Sequelada com a mão esquerda (a única que ela tem) no
ombro direito da amiga. –Ela é uma recém-chegada aqui em Defuntópolis, e está hospedada provisoriamente em minha tumba.
Viemos aqui para escolher uma bonita morada para ela – e adiantou: -Com um
precinho bem camarada... Veja, lá!
-Vieram ao lugar certo,
meninas bonitas! – tranquilizou José Sarcófago a outra e, olhando para Ana,
acrescentou: -Defuntópolis nunca viu
tanta beleza numa alma feminina – em seguida, o defunto galanteador e
construtor segurou a mão da defunta Cadáver e beijou-a suavemente.
Minutos depois, Ana
folheava um catálogo de moradas. Uma tumba toda revestida de tijolinhos a cativou.
-É esta! – disse a moça
mostrando a imagem da tumba de tijolinhos para José.
-Muito bom gosto,
menina! – respondeu em aprovação o outro.
-Qual o melhor plano de
aquisição, amigo Sarcófago? – perguntou Lua Sequelada.
-Para Ana, farei o
mesmo plano que fiz para a sua kitchetumba,
Luazinha: suaves parcelas a serem pagas em trezentos anos. Tudo financiado
através do plano Minha Tumba, Minha Morte.
-Trezentos anos?! –
assustou-se Ana Cadáver.
-Sim, querida!... E vou
te dizer: é um tempo que passa muito rápido por aqui; mais quarenta anos e
termino de pagar a minha kichetumba –
disse Lua para tranquilizar a amiga.
-E como pagarei as
parcelas? – quis saber Ana.
-Serão cento e vinte
patelas por mês – respondeu Sarcófago.
-Patelas?! –
espantou-se mais uma vez a defuntinha. –E onde arranjo patelas?
-Bom... Primeiro você
terá de arranjar um emprego, Aninha – respondeu Lua. -Posso ajudá-la nisso.
Quanto às patelas, elas são fabricadas por Julião Presunto, o nosso designer de corpos.
-Se é assim, podemos fechar
o negócio, Sr. Sarcófago – finalizou Ana Cadáver.
Ana assinou toda a
papelada necessária para a aquisição da nova morada. José Sarcófago abriu uma
deliciosa garrafa de formol safra 39 a. C., e os três (José, Lua e Ana)
comemoraram a nova condição – metafísica – da defunta Ana Cadáver em Defuntópolis.
-Bem, amanhã já posso
lavrar os documentos no Cartório Defuntus
Adjuntus... O próximo passo é escolher um bom terreno... Ah! – Lembrou José
Sarcófago repentinamente – tenho um excelente terreno na “Ruela dos Literários”,
vizinho de Clarice Lispector.
Ana deu um pulo de
contentamento.
-Oh, Meu Deus! Quero
minha morada nesse terreno, Sr. José!
-Já é seu, Aninha... Já
é seu.
Ana e Lua despediram-se
de José Sarcófago e puseram-se a caminhar de volta à tumba onde coabitam. A meia distância da kitchetumba de Lua, Ana estancou-se bruscamente no meio da alameda.
A amiga perguntou o que estava acontecendo. Ana, olhando fixamente para uma
defunta sentada ao lado de um chafariz repleto de estátuas de anjos, perguntou
com a voz trêmula, apontando para a morta:
-Quem é aquela mulher
sentada na mureta daquele chafariz?
-É Ana Tumba. Uma
defunta muito estranha que perambula por este mundo – respondeu Lua Sequelada.
-Meu Deus, não poder
ser! – disse Ana num assombro. E novamente desfaleceu, desta vez amparada pelo
único braço da amiga.
Capítulo
VI
ANA CADÁVER & ANA TUMBA: UM
ACERTO DE CONTAS
-Ana, querida,
acorde!
Ana Cadáver
semicerrou os olhos. Depois sentou-se vagarosamente com a ajuda de Lua
Sequelada. Esfregou o nariz e perguntou para a amiga:
-Lua, o que foi isso
que você esfregou no meu nariz?
-Formol, meu bem,
formol. Levanta até defunto!
-A moça do
chafariz... Preciso falar com ela, Lua...
-Ela ainda está
lá. Não tirou os olhos-de-morta de cima da gente um só segundo.
-Vou até lá falar com
ela.
-Vá Ana... Mas
lembre-se: nem tudo o que ela disser corresponderá à verdade... Não para esta
dimensão.
-Não compreendo
algumas coisas que me dizem por aqui.
-Não te preocupe,
queirda... Tudo se encaixará no momento que tiver de ser... Apenas confie na
tua essência almática.
Ana levantou-se e
caminhou vagarosamente em direção à moça-fantasma do chafariz. Ela, Ana Tumba,
fitava Ana Cadáver com olhos inertes, mal piscava. Ana Cadáver, já de frente
para Ana tumba, balbuciou as primeiras palavras de contato:
-Você... Nós... Minha
irmã... Eu... Oh, que surpresa!
-Sim, mana! Sou eu...
E vim te dizer que aqui não é o teu lugar. Não a quero neste mundo.
-Mas, Tuquinha... Eu
estou tão feliz por vê-la aqui... Não me sinto mais abandonada... Abrace-me,
por favor.
-Não, Ana... Não
quero abraçá-la... Aqui não é o teu lugar, já disse... Vá embora daqui, agora!
-Mas, eu, eu...
Conheci um rapaz, Arlindo e...
-Esqueça-o!... Farei
tudo o que estiver ao meu alcance para que vocês não fiquem juntos nesta terra
de esquecimento.
-Mas irmã, eu...
-Nem mais uma
palavra, Ana Cadáver!
Ana Tumba levantou-se
e pôs-se a caminhar por uma alameda fria e cinzenta que cortava uma quadra
repleta de imensas tumbas góticas; o mármore branco dava ao espaço um ar de
paisagem congelada. Ana Cadáver correu os olhos ao redor e não avistou a amiga
Lua Sequelada. De repente, a defuntinha sentiu umas mordicadas na canela
direita. Ela olhou na direção dos pés e pôs-se a rir.
-Ah, seu danado! É você?
Veio me dar um recado do seu dono?
Era Sombrito, o
cãozinho-caveira de estimação de Arlindo Caveira. O pequenino montinho de ossos latia alucinadamente
como se quisesse dizer a Ana para que o seguisse. Ela compreendeu.
-Ah, já sei... Você
quer que eu te siga... Pois bem, meu cupidinho
de ossos, vamos brincar de ama segue
o mestre, então.
Sombrito, na sequência, como um
soldadinho desengonçado, pôs-se a marchar por uma alameda toda iluminada de
vaga-lumes. Ana o seguiu feliz porque se encontraria com Arlindo, mas estava
com o coração-de-morta apertado
devido à insensibilidade da irmã. Depois de um tempo, Sombrito estancou-se na
soleira da entrada da tumba de Arlindo e sua mãe, Morta da Silva, a dona Mortinha. Ana nem precisou bater à
porta; dona Morta a abriu e, com um sorriso iluminado, recebeu Ana Cadáver com
todo o seu amor de mãe.
-Entre, filha minha! Sou Morta da
Silva, a mãe de Arlindo... Seja bem-vinda a esta tumba abençoada... Arlindo,
agora, só respira por você... E eu só posso querer-te bem... Se faz meu filho
respirar, só pode ser amor.
-Oh, Dona Morta, eu,
eu... Eu não tenho palavras para...
-Não diga nada, minha
flor... Meu filho a espera para o jantar... Entre, por favor!
Ana e dona Morta
deram-se as mãos e caminharam para a sala de jantar. Arlindo estava sentado
numa pequena poltrona vermelha. Uma doce melodia tomava conta do delicado
ambiente decorado por sua mãe. O rapaz estava tocando uma cantiga de amor
gótica em seu violino. Os olhinhos azuis de Ana Cadáver transbordaram de
lágrimas do mais puro orvalho. E quando a defunta enamorada quis correr para os
braços do amado, a porta da tumba abriu-se bruscamente. Um vento forte soprou.
Ana, Arlindo e Dona Mortinha voltaram-se para a direção da porta. Feito
uma estátua de pedra, estancada na entrada da morada, estava Ana tumba. Seus
olhos ardiam como fogo. A misteriosa morta não estava de bom humor.
-Vou acabar com isso,
agora! Eu te avisei, Ana Cadáver!
Capítulo
VII
UM TRABALHO PARA JULIÃO PRESUNTO, O
DESIGNER DE CORPOS
Mais
veloz que a luz, Ana Tumba, completamente descontrolada, partiu para cima de
Ana Cadáver, e arrancou, num puxão, a orelha esquerda da indefesa defuntinha.
Arlindo Caveira, num golpe súbito de pernas, saltou para cima da irmã
endiabrada e a lançou por alguns metros. Quando Ana Tumba se levantou para um
novo golpe, sentiu um chumaço de algodão tampar-lhes as narinas. A morta perdeu
os sentidos e caiu estatelada no chão da tumba. Ana Cadáver, Arlindo e Dona
Mortinha entreolharam-se, e depois olharam novamente em direção à porta de
entrada da morada.
-Não
existe nada melhor que formol, levanta até defunto... Mas derruba, também! –
disse Lua Sequelada, com Ana tumba caída aos seus pés.
Ana
Cadáver correu ao encontro de Lua e agradeceu a ajuda da amiga, mas a pobre
defunta estava cada vez mais confusa com o ódio da irmã, Ana Tumba.
-Eu
não entendo... Que mistério é esse? Por que minha irmã me quer longe daqui,
Lua?
-Você
compreenderá no momento certo, Ana... Não posso te dar as respostas que
procura... Não depende de mim... Só da tua alma... Ela, a tua alma, é que
precisa acordar.
-Mas...
-Depois,
querida, depois. Agora você precisa de alguém para consertar o estrago que Ana
Tumba fez na tua orelha esquerda.
-Venha
comigo, Ana – disse Arlindo Caveira carinhosamente para a namorada enquanto a
puxava pela mão esquerda. -Vou levá-la até Julião Presunto. Ele saberá o que
fazer.
-Arlindo... E quanto a Ana tumba, o que faço? – perguntou
dona Mortinha.
-Faça
o de sempre, mamãe, o de sempre – respondeu o rapaz.
Arlindo,
Ana Cadáver e Lua Sequelada partiram em direção à tumba de Julião Presunto,
enquanto dona Morta arrastava o cadáver de Ana Tumba para dentro de um caixão.
-Perdoe-me,
filha... Mas tenho de fazer isso... É para o teu próprio bem.
Dona
Morta, então, resignadamente, abriu o peito de Ana Tumba com uma tesoura e
arrancou-lhe o coração. Era a única forma de neutralizar um além-túmulo fora de
controle.
-Agora
Ana Cadáver poderá trilhar seu caminho em paz – disse para si mesma a mãe de
Arlindo Caveira com o coração de Ana Tumba entre as mãos.
A
umas seis quadras dali, um defunto muito forte abria a grande porta de seu
jazigo:
-Quem
ousa desconcentrar meus trabalhos, posso saber?
-Perdão,
Senhor Julião Presunto... É coisa urgente – disse Arlindo para o defuntão.
-Ah,
são vocês!... Lua e Arlindo... Mas... Quem é essa defuntinha azulada e
assustada e... sem uma orelha?
-Ela
é Ana Cadáver, Senhor Julião, minha namorada.
O
rosto de Ana Cadáver avermelhou por uns instantes. A defunta ficou toda boba
por ouvir “minha namorada” da boca do amado.
-Hum,
namorada... Que belo casal! Em que posso ajudá-los?
-Bem,
como pode ver, Ana precisa de uma nova orelha.
-Ah,
sim, entrem... Acabei de receber uma remessa de novas orelhas... Vamos ver se
temos uma que sirva para a tua defuntinha.
-A
sua tumba-atelier é um lugar fascinante, Senhor Julião – disse Lua Sequelada, e
revelou: -Meu sonho é ter um braço novo assinado
por você.
-E
por que ainda não me procurou, menina?
-Porque
um braço custa mais patelas do que eu poderia ganhar por toda a eternidade –
respondeu prontamente Lua com um riso largo.
-Não
te preocupe, filha... Vou resolver o problema de orelha da menina Cadáver e depois dou um jeito no teu braço.
-Mas,
Senhor Julião, eu...
-É
presente, filha, presente...
Os
olhos de Lua encheram-se de lágrimas de orvalho. A defunta maneta correu para
Julião Presunto e o abraçou com ternura.
-Obrigado...
Muito obrigado!
-Fica
em paz, querida – disse emocionado o designer.
Julião
conduziu Ana Cadáver para trás de um biombo, e, com a moça deitada numa maca,
pôs-se a trabalhar em sua orelha. Depois de um tempo, o designer chamou por Arlindo e Lua para mostrar aos dois a
intervenção que havia acabado de fazer na mocinha-defunta.
-Vejam,
que obra-prima! – comemorou o defuntão.
Arlindo
Caveira e Lua Sequelada, horrorizados e completamente sem voz, nada puderam
dizer.
-Não
gostaram? – perguntou Julião aos dois mortos petrificados. –Bom, é melhor eu
saber a opinião da nova dona da orelha magnífica que acabei de implantar.
Ana
Cadáver nada dizia, apenas olhava assustada para o amado e a amiga. Julião,
então, entregou-lhe um espelho. Ana, quando se viu no pequeno objeto, deu um
berro que ecoou por toda a Defuntópolis.
O
defunto atrapalhado havia implantado uma enorme orelha de abano na pobre Ana Cadáver.
Capítulo
VIII
AS LIMOUSINES DE JUCA COVA
Julião,
assustado com o berro de Ana Cadáver, precipitou-se na direção de Arlindo e
Lua. Os três – abraçados entre si – olhavam para a moça com olhares de
zombaria. Ao levantar-se da maca, Ana tombou a cabeça – devido ao peso da nova
orelha implantada – para o lado esquerdo. Foi o suficiente para que os outros
se desmanchassem em deliciosas gargalhadas.
-Ai!
Que enrascada o senhor me meteu, hein,
seu Julião Presunto?! – na sequência, Ana também desatou a rir.
Com
toda a sua habilidade de designer,
Julião, em pouco tempo, consertou a trapalhada que fizera. Ana voltou a ter uma
linda orelha esquerda, um pouco menos pálida que a direita, é verdade, pois a
nova orelha implantada mal havia passado pela missa de sétimo dia realizada no
lugarejo de onde viera.
-Agora
que tudo voltou à normalidade – disse Julião para Ana – quero levá-la com seus
amigos para um passeio de limousine
para desfazer qualquer possível má impressão a meu respeito.
-Oh,
seu Julião, eu não estou brava, eu... – Julião interrompeu a moça Cadáver e foi
logo retrucando: -Não aceito um não como resposta.
Dito
isso, seguiram todos para a agência de limousines
de Juca Cova, um morto todo cheio de salamaleques que realiza viagens e
transportes de luxo no além-mundo.
Lá
chegando, ao adentrarem o imponente túmulo de Juca Cova – onde o defunto morre e trabalha com sua agência de
viagens –, Julião e seus amigos estancaram desconsertados à porta da morada do
empertigado agente. Juca estava num momento muito íntimo de sua condição
metafísica. Sentado de frente para uma penteadeira estilo retrô, o defunto, com uma escova de cabelos toda sarapintada de
cor-de-rosa, alisava tranquilamente sua cabeleira encaracolada, e, ao som de Amy Winehouse (outra além-túmulo),
tentava acompanhar a canção Rehab
completamente desafinado.
Julião,
Ana Cadáver, Arlindo e Lua Sequelada puseram-se novamente a gargalhar (hoje o
dia estava para isso). Juca Cova, ao ouvir o estardalhaço das risadas,
assustou-se, e, ao virar-se, se desequilibrou em cima da banqueta – com assento
almofadado revestido de couro na cor vermelha – e caiu de quatro sobre o assoalho frio de sua tumba. Uma nova onda de
gargalhadas se fez ouvir. O morto, todo atrapalhado, levantou-se rapidamente e
recompôs como pôde sua pose de homem das
viagens e transportes de luxo.
-Pois
não, senhores e senhoritas, em que posso ajudá-los? – disse então o agente –
solenemente – como se nada tivesse acontecido.
-Queremos
alugar a sua melhor limousine para um passeio pelos recantos de Defuntópolis, Senhor Juca Cova –
respondeu, também solenemente, Julião Presunto.
-Ah,
sim... Acompanhem-me até à garaĝo das
limousines, por favor! (Juca costuma
pronunciar algumas palavras em esperanto para demonstrar uma espécie de
refinamento exótico, como garaĝo, que
significa garagem).
Ana
encantou-se com o carro-limousine-funerário
vermelho. E assim todos partiram para um tour
por Defuntópolis.
Arlindo
foi ao volante, com Ana ao seu lado; Julião e Lua foram no banco traseiro. Juca
Cova, acompanhando a limousine – com as vistas – que sumia pela estrada lateral
da cidade-cemitério, acenava com um lenço branco e repetia ainda mais
empertigado: -Ĝis poste!... Ĝis poste!...
(Até mais ver! em esperanto).
Algum
tempo depois, na segunda curva da estrada, o carro serpenteou repentinamente –
depois de passar com a roda dianteira direita por cima de um crânio abandonado.
Ana desequilibrou-se e, como o carro estava com a capota baixada, e não havia
cinto de segurança (cinto de segurança para quê?), a moça caiu para fora do
veículo ainda em movimento. Todos ouviram um forte estalido, como se fosse uma
massa dura e uniforme se chocando contra uma massa achatada de metal. Era Ana,
que, ao cair, bateu com a cabeça na calota da roda direita traseira do veículo.
A poeira acinzentada que subiu do longo rastro da freada do veículo encobriu a
todos. Um silêncio seco se fez no ar.
Capítulo
IX
UMA CIRANDA DE LUZ PARA ANA CADÁVER
Arlindo Caveira pisou
fundo no freio da limousine-funerária.
A geringonça parou alguns metros depois do local onde Ana Cadáver despencara
feito jaca madura. O rapaz, aos prantos, saiu em disparada para socorrer a
amada, seguido dos amigos Julião Presunto e Lua Sequelada.
-Ana... Ana... Meu Deus! – gritava o defunto enamorado, e, ao
alcançar a moça, pôs-se a falar com doçura na voz: -Ficará tudo bem, querida...
Nosso amor perdurará por toda a eternidade – dizia ele ao mesmo tempo em que
afagava os cabelos louros e o rostinho azulado da doce cadaverzinha.
No suave silêncio da atmosfera do além-túmulo, quebrado apenas
pelos murmúrios de Arlindo, uma luz de um azul leitoso formou-se, em forma de
círculo, um pouco acima das cabeças dos que estavam de pé, Julião e Lua. Um
pequeno ser – todo esverdeadinho – transfigurou-se do espaço luminoso como quem
atravessa uma espécie de portal. Era Zuluzinho, um fantasma-criança, escudeiro
de Alma Luz, a fotógrafa de almas. O curioso serzinho aproximou-se do rostinho
de Ana Cadáver e sussurrou em seus ouvidos:
-Aninha, todos os além-túmulos de Defuntópolis a querem muito bem. Já está na hora de você voltar
para a sua casinha, linda menina – e, em seguida, Zuluzinho pediu para que
Arlindo e Julião levassem Ana com cuidado e a deitassem sobre o centro de um
gramado – também circular – a poucos metros do carro-funerário-limousine.
-Deitem-na com cuidado, com o ventre para o céu – disse uma voz
que vinha um pouco mais afastada de todos. Era a voz de João Catatumba, o
guardião dos mortos defuntópolenses.
Dito isso, João – que
trazia nas mãos um livro de capa dura azul – seguiu até o corpinho desmaiado de
Ana Cadáver e ajoelhou-se rente ao seu tronco. O defunto abriu o livro e, com
os olhos fechados e a mão sobre o coração da moça, pôs-se a ler um pequeno
texto de grande delicadeza:
“Mas quando o homem está morto, uma vez que seu corpo,
separado do seu espírito, está consumido, em que se torna ele? O homem estando
morto uma vez, poderia reviver de novo? Nessa guerra em que me encontro todos
os dias da minha vida, espero que minha transformação chegue.” (*)
João, na sequência,
levantou-se e pediu para que os presentes – Arlindo Caveira, Lua Sequelada e
Julião Presunto –, unindo-se a ele, se dessem as mãos de modo a cirandar Ana
Cadáver. À medida que os amigos cirandavam o corpinho da defuntinha, novas mãos
uniam-se às deles. E, assim, transfigurando-se, um a um, do imenso círculo azul
leitoso que lembra um delicado portal, Alma Luz, Ana Tumba, Dona Morta da
Silva, Maria Múmia, Juca Cova e José Sarcófago, fizeram aumentar uma espécie de
energia transcendental para o despertar
de Ana Cadáver. Sombrito, o cãozinho de ossos, todo espavorido, corria
alucinadamente atrás de Zuluzinho na tentativa de alcançar seu rabicho
esverdeado. O pobre fantasminha
esgoelava feito criança com medo do Abaporu
(versão do bicho-papão na visão da artista plástica brasileira Tarsila do
Amaral).
Os serezinhos corriam cirandando a ciranda que cirandava nossa querida
e cirandada Ana Cadáver.
(*) Pequeno texto lido
por João Catatumba: (Job, cap. XIV, v. 10,14. Tradução de Le Maistre de Sacy),
retirado de “O Evangelho Segundo o Espiritismo” de Allan Kardec.
Capítulo
X
TODO NOVO DESPERTAR É SEMPRE
REPLETO DE NOVAS ESPERANÇAS
“Sonhei que renunciara
à vida. Convertera-me em vigilante noturno e guardião dos túmulos – na montanha
– junto ao solitário do castelo da Morte. Eu respirava a atmosfera de
eternidades reduzidas a pó. Minha alma jazia sufocada e poeirenta. E quem
poderia fornecer um pouco de ar à alma nesse lugar? Rodeava-me a claridade da
noite e a seu lado se agachava a solidão. Assim para mim passava, deslizava o
tempo, se é que ainda se podia falar em tempo. Que podia eu saber a respeito?
Mas finalmente aconteceu alguma coisa que me despertou. E mil rostos de
crianças, de anjos, de corujas, de loucos e de borboletas do tamanho de
crianças se riam com sarcasmo e zombavam com grande tumulto de mim. Eu tinha um
medo horrível. Caí no chão e gritava de pavor como nunca gritara. Mas foi meu
grito que me despertou e, então, tornei a mim.” (NIETZSCHE, em “Assim falava Zaratustra”).
Deitada
em seu leito de Bela Adormecida, Ana
Maria Riviera Soledad, impulsionada por um sobressalto de angústia – seguido
dum profundo resfolegar de quem volta de um afogamento –, levantou meio corpo. Sentada
na cama, recobrava a consciência. O quarto, apenas iluminado com a fosca luz de
uma luminária confeccionada em papel crepom, deixava o ambiente com uma
atmosfera febril. Arlindo Soledad, acomodado numa pequena poltrona vermelha,
velava pacientemente a amada esposa. A moça correu lentamente os olhos azuis à
procura de seu homem, e, antes de vislumbrá-lo, teve sua mão direita
delicadamente envolvida por ele, que a aquietou:
-Não
se assuste, minha querida... Estou aqui para ampará-la.
-Quanto
tempo eu dormi desta vez, Arlindo? – quis saber a moça.
-Trinta
e dois dias, meu bem.
-Menos
que da última vez – lembrou Ana.
-Sim...
É como se o processo precisasse de menos tempo a cada crise... Até findar-se.
-Ou
até que eu parta de vez – complementou a esposa num suspiro melancólico.
-Não
pense, assim, Ana... Não temos controle sobre o depois... Tudo o que nos cabe é viver esses seus retornos entre um
apagamento e outro – quis amenizar Arlindo o sofrimento da mulher.
Enquanto
Ana Maria tomava um relaxante e saudoso banho de banheira, Arlindo deu alguns
telefonemas para alguns amigos muito especiais que acompanham o drama vivido
pelo casal há algum tempo.
Horas
depois – já era noitinha –, Ana, sentada na poltrona vermelha, folheava um
pequeno livro de capa dura azul. Arlindo surgiu na soleira da porta do quarto
pisando suavemente; alinhou-se ao batente, e, com um pequeno sorriso, fitou com
ternura a mulherzinha.
-Estão
todos aí, novamente? – perguntou Ana com um brilho diferente no olhar.
-Sim,
querida... Todos... E será sempre assim se preciso for.
Arlindo,
então, estendeu a mão direita para Ana e puxou-a delicadamente da poltrona. Os
dois caminharam abraçados até o patamar da escadaria da casa que dá para o andar
de baixo. A espaçosa sala, como das outras vezes, estava em clima de festa,
como se para receber quem voltava de uma longa viagem. Era Ana voltando de um
tempo e de uma dimensão que só ela compreendia. A moça avançou alguns degraus
escada abaixo e foi amparada por Ana Tereza Riviera, sua irmã gêmea. As duas
enlaçaram-se num doce abraço de verdadeiro amor fraternal, como sempre
acontecera nas outras ocasiões. Num degrau mais abaixo, um rapaz de sorriso
largo, aguardava também o seu abraço de boas-vindas. É ele o Dr. João Bráz, um
médico obstetra, grande amigo de Arlindo.
-Quero
registrar este momento numa bela tela pintada a óleo – disse num tom mais alto,
Alma Graciosa, uma talentosa artista plástica, amiga de longa data de Ana
Soledad.
As
amigas abraçaram-se longamente. Ana, depois, perguntou por Luana Flores, a
eficiente secretária que de tudo cuidava durante as suas ausências de vida.
-Está
logo ali – respondeu Alma apontando para uma moça de cabelos vermelhos e o
braço direito ausente.
A
moça preparava um dry Martini
enquanto conversava animadamente com Juca Telles, diretor comercial de uma
grande agência de viagens onde Arlindo também é colaborador. Os dois falavam
sobre a excêntrica aventura de José Landes, um amigo em comum de ambos, que
resolvera construir um condomínio de casas auto-sustentáveis
no alto de uma serra nos confins do Rio Grande do Sul. Na primeira prova de
terraplanagem, o terreno cedera e formara uma enorme cratera, como se um
meteorito, aflito de tanto despencar do infinito, resolvesse justo ali
descansar a sua impaciência.
-Queridos,
por favor! – interrompeu Marta da Silva Soledad, mãe de Arlindo, a animada
conversa entre Luana e Juca. -Preciso de ajuda com o bolo de boas vindas – ela
precipitava da cozinha portando um bolo todo enfeitado de rosas brancas, as
preferidas de sua nora, Ana Maria.
Na
ausência de Juca, que atendia ao pedido de Marta, Luana aproveitou o espaço de
tempo para saudar Maria Dóri, uma importante curadora de um museu paulistano.
Maria, numa animada conversava com Julião Lambardino, um famoso designer de próteses humanas, explicava
sobre o curioso processo de mumificação dos faraós, o assunto preferido da
curadora.
Ana
Maria e Arlindo têm uma vida cercada de pessoas e fatos excêntricos. São
felizes porque também eles vivem num tal carpe
diem: sabem que o seu tempo é a exata medida de suas reais vontades e
necessidades – nem mais, para não saturar-lhes os espíritos, nem menos, para
não lhes abrir a corrente da melancolia.
E
naquela noite de mais uma especial reunião entre amigos que se precisam, uma
leve claridade da lua banhou e abençoou, através da larga janela envidraçada da
grande sala da casa de um casal cheio do mais puro bem-querer, a celebração da
verdadeira amizade entre pessoas que carregam dentro de si o sopro da VIDA.
Do
alto, eu, o autor deste conto, feito um pequeno pássaro a atravessar
tranquilamente o céu dessa turma em festa, desviei lentamente o olhar, e vi,
com alegria no coração, o pequeno menino Bernardo, filho de Alma Graciosa,
arrastando de um lado para o outro, pela cauda, o cachorro Bugaboo, a alegria
de Arlindo Soledad durante as ausências de sua mulherzinha dorminhoca e
sonhadora. O menino, que ora puxava o cachorro pela cauda e ora dava a
impressão de conversar com alguém ao seu lado, parecia brincar com seu
amiguinho imaginário, o fantasminha Zuluzinho. Então fechei suavemente os meus olhos de
passarinho e agradeci a oportunidade mágica de aprender com o mundo dessas
incríveis almas.
“Viva
a VIDA!” – disse eu com o coração. E continuei o meu voo em busca de mais uma
aventura para contar para vocês, meus queridos e ilustres leitores.
Que mal há?
Que mal há
Morrer de amor?
Que mal há
Sentir essa dor?
Que mal há,
Se houver o calor?
Se a chama é grande,
O amor inflama;
Se o amor é tosco,
A alma reclama.
De Ana Maria para Arlindo, com amor.
FIM
Éd Brambilla. XIPOCOS. Mini-romance gótico. 2014/2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário