ALMa RaBiScAdA

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Xipocos

Éd Brambilla


      Apresenta:      

Xipocos


Um mini-romance gótico

2014/2015



Sumário
                                           

De Autor para Leitor, p. 3
Capítulo I – João Catatumba e a Árvore Imorredoura,  p. 4
Capítulo II – Uma lição de morte com Maria Múmia,  p. 7
Capítulo III – A beleza d’Alma de Alma Luz,  p. 12
Capítulo IV – O amor poético de Arlindo Caveira & Ana Cadáver,  p. 15
Capítulo V – O ProjetoTtumbiliário de José Sarcófago,  p. 18
Capítulo VI – Ana Cadáver & Ana tumba: um acerto de contas,  p. 21
Capítulo VII – Um trabalho para Julião Presunto, o designer de corpos, p. 24
Capítulo VIII – As limousines de Juca Cova, p. 28
Capítulo IX – Uma ciranda de luz para Ana Cadáver, p. 31
Capítulo X – Todo novo despertar é sempre repleto de novas esperanças, p. 33




De autor para leitor

         Xipoco é uma palavra originária de Moçambique/África, cujo significado é: alma penada que vagueia sem destino; fantasma. Xipocos é um conto mergulhado nas inferências de mundo, principalmente nas metafísicas; um subterfúgio para falar de forma poética, filosófica, e, principalmente, bem-humorada, de um dos maiores medos do ser humano: a Morte. Eu, o autor, busquei na formação do contexto da trama – ora através de neologismos (como o nome da cidade onde se passa a história, Defuntópolis), ora através de elementos do imaginário comum (em se tratando da tão temida morte) e ora através de algumas intertextualidades literárias –, transmitir mensagens de alento para que o fantasma do medo de morrer seja menos austero e menos inquiridor. A inspiração para a construção de Xipocos se deu através de algumas linguagens literárias de grandes valores estéticos: desde o Realismo Fantástico – ou Realismo Mágico –, estilo que tem como um de seus precursores o notável escritor colombiano Gabriel Gárcia Márquez, passando pelo movimento gótico retomado durante o Romantismo, até o movimento expressionista alemão. Somente através destes estilos, Xipocos ganhou liberdade para serpentear entre os mundos físico e metafísico, tão marcados e ressignificados na existência humana. Depois de um tênue contato com os xipocos Arlindo Caveira, Ana Cadáver, Ana Tumba, Alma Luz, João Catatumba, José Sarcófago, Julião Presunto, Juca Cova, Maria Múmia, Morta da Silva (a dona Mortinha), Lua Sequelada, o pequeno menino Bernardo, Sombrito (o fiel cãozinho escudeiro de Arlindo Caveira) e Zuluzinho (o fiel fantasminha de estimação de Alma Luz), dificilmente o leitor ficará insensível à sua própria essência almática.



Capítulo I

JOÃO CATATUMBA E A ÁRVORE IMORREDOURA


Conta uma lenda (ou tudo não passaria de um sonho?) que num lugar muito além da imaginação de todos os viventes, existe uma cidade-cemitério chamada Defuntópolis. Lá, bem ao pé de uma imensa árvore encantada, seus habitantes, os além-túmulos, morrem tranquilamente num eterno carpe diem.
Uma grande árvore de tronco muito grosso e de folhas vermelhas como o sangue, batizada de A Árvore Imorredoura, é a responsável pela transmutação dos viventes para o mundo dos além-túmulos. A árvore também é chamada carinhosamente de o grande útero gerador da vida eterna pelos despreocupados defuntópolenses. Os frutos da Árvore Imorredoura são do tamanho natural de cada vivente destinado a morrer em Defuntólis. Cada fruto é um abençoado útero a aninhar uma alma. E o tempo do vivente – que no fruto habita como uma larva no casulo, inconsciente da morte – é contado a partir de sua idade cheia a ser cumprida no mundo dos vivos até a extinção de sua vida terrena. É quando ocorre a grande e mágica trasladação: o parto para a morte. O fruto, a essa altura, já tem o seu invólucro todo trincado, feito ovo que vai dar à luz um pinto.
Ao pé da grande árvore-mãe, um guardião de almas, João Catatumba, está sempre alerta para uma nova morte. É ele o grande parteiro dos além-túmulos. João também é responsável por recepcionar os recém-mortos no novo mundo. Com muito carinho e compreensão, o guardião explica detalhadamente a todos que ali chegam sobre como será o dali por diante.
Cada novo morto tem direito a uma certidão de óbito defuntópolense, que é expedida gratuitamente pelo Cartório Oficial da cidade, de nome Defuntus Adjuntus, cuja serventuária responsável é dona Maria Múmia. Além da responsabilidade do cartório, Maria Múmia também é responsável pelo curso intitulado Dies Aeternus, ministrado para os recém-chegados, ininterruptamente, durante os seus primeiros trinta dias de morte. A memória de vida terrena de cada novo além-túmulo vem completamente apagada do antigo mundo. O curso gerido pela serventuária é crucial para a adaptação de quem faz a transmutação.
João Catatumba, sentado num caixãozito de criança-defunta, aguarda a chegada de uma nova moradora. Ele já sabe que se trata de uma jovem mulher de vinte e dois anos de idade.
-Pobre, menina! Essa moça parece que não se deu muito bem lá no mundo dos viventes... Tão nova – lamenta o guardião. -Melhor para os solteiros daqui! – comemora.
João confere mais uma vez a nova certidão de óbito em suas mãos:
-A-N-A C-A-D-Á-V-E-R – soletra o defunto, e pensa consigo mesmo: “Hum... Já temos aqui uma Ana Tumba... Serão parentes?” – ao mesmo tempo em que começa a folhear um pequeno relatório anexado à certidão da moça.
Enquanto João vasculhava o relatório geral anexado à certidão de Ana Cadáver, um barulho de madeira estalando o desconcentrou. Era o rompimento do fruto da nova morta. Rapidamente, o parteiro lançou mão de sua rede pega-morto, uma invenção sua, e correu para debaixo da árvore imorredoura, a fim de aparar o cadáver da nova defuntinha.
SPLASH! - foi assim o som do corpo batendo contra a rede. João olhou para a moça-cadáver, e, com olhos de encantamento, fez suas conjecturas: -Meu Deus, que moça gloriosa!... Tão azuladinha!... Os cabelos tão louros! – e sentenciou: -É ela, agora, a mais linda defunta a morrer por estas bandas – e, num gesto impensado, buscou os lábios da mais nova defuntópolense.
Ana Cadáver, ao abrir seus dois enormes olhos arredondados e azulados, completamente confusa, desesperou-se com a cena.
-Aiii... Socorrro!!! Quem é você?! – inquiriu a morta, fitando os olhos moribundos de João.
-Não se assuste, senhorita... Meu nome é João Catatumba... Vou explicar sobre tudo isso que está acontecendo com você.
Ana Cadáver, então, correu os olhos-de-morta pelos arredores: viu a árvore imorredoura, o caixãozito de criança-defunta e alguns estranhos transeuntes que vigiavam a cena. Depois, tentando escapar da rede pega-morto de João Catumba, perguntou completamente zonza:
-Que xicuembo é esse?!

VOCÁBULÁRIO E EXPRESSÕES:

1.     Xipoco: palavra originária de Moçambique/África, cujo significado é fantasma;
2.     Imorredouro: aquilo que é eterno, que não morre;
3.     Carpe Diem: frase em Latim de um poema de Horácio, e é popularmente traduzida como ‘colha o dia’ ou ‘aproveite o momento’;
4.     Dies Aeternus: Latim, ‘dias eternos’.
5.     Xicuembo: palavra originária de Moçambique/África, cujo significado é feitiço.

NEOLOGISMOS ‘XIPOCOS’ DO AUTOR:

6.     Defuntópolis: nome da cidade onde se passa a história;
7.     Defuntópolense: gentílico de quem nasce em Defuntópolis.



Capítulo II

UMA LIÇÃO DE MORTE COM MARIA MÚMIA


João Catatumba, ao mesmo tempo que desfazia as amarras de sua rede pega-morto para libertar Ana Cadáver, aproveitou a liberdade da boca para falar. O paciente defunto-guardião recomeçou, pela infinita vez, a eterna ladainha da explicação da vida além-túmulo:
-Não é feitiço o que você está presenciando, filha!... Trata-se do tão falado mistério que existe entre o céu e a terra, aquela tal coisa que a vã filosofia dos viventes jamais conseguirá imaginar.
-Isso é de Shakespeare – lembrou Ana.
-Sim, querida... A máxima pertence a ele... Mas a busca pela resposta já vem muito antes das palavras desse moço... Ele só fez eternizar a angústia.
-Mas, responda-me, João: é este lugar um dos nove níveis do purgatório descritos por Dante Alighieri na sua Divina Comédia?
´        -A alegoria desse moço tem lá seus sentidos, querida... Mas em vez de nove níveis para cima, até o cume do sonhado paraíso, e nove níveis para baixo, até o mais profundo recanto do inferno, o que existe são apenas o Aqui e o Acolá.
-Aqui e Acolá? Não entendi muito bem, João.
-O Aqui, Ana, é o espaço que compreende todas as cidades onde morrem os além-túmulos... Você estava predestinada a morrer em Defuntópolis, por exemplo... Um nível abaixo está o Acolá, onde habitam os viventes.
-E por que o nível do Aqui não é uma cidade única? – quer saber a curiosa e perguntadeira Ana Cadáver.
-Tudo no plano do Aqui é exatamente distribuído como no plano do Acolá... A Morte, menina, é tão somente um espelho da Vida.
-Ai, minha cabeça! Estou confusa, João... É muita informação para absorver.
-Não te preocupe, minha menina confusa... Já disse sabiamente Clarice Lispector, agora também uma além-túmulo: “Não se preocupe em entender; viver ultrapassa todo entendimento...” Basta pensar na inversão de sua máxima.
-Vou fundamentar-me nisso, amigo... Mas, e agora, o que tenho de fazer? – questionou a defuntinha com um semblante todo emudecido. –Não me lembro de absolutamente nada do momento anterior deste meu estranho nascimento.
-Aos poucos, Ana, você se lembrará... Mas somente do essencial – respondeu João, e corrigiu a dúvida de Ana: -Não é verdade o que você disse a respeito de não se lembrar de absolutamente nada do antigo mundo... Você não esqueceu a sua língua pátria, por exemplo.
Por um instante, a moça aquietou a alma, e, depois de um pensamento, olhou para João e se desfez em gargalhadas. O defunto-parteiro, então, entendeu que Ana Cadáver já tinha vindo pronta. Tratava-se de uma alma iluminada.
Algum tempo depois, João e Ana seguiram para o Cartório Defuntus Adjuntus. Lá, dona Maria Múmia estava à espera de sua mais nova aprendiz. Ana teria a sua primeira lição do curso Dies Aeternus.
-Muito obrigada, amigo Catatumba! – agradeceu a gentil senhorita Cadáver na soleira da porta do cartório.
-E não se esqueça, Aninha: moro na tumba 32, uma meio esverdeada, na Ruela Dos Sonhadores... Esperarei ansiosamente uma sua visita... – disse João. –Quero te mostrar um livro precioso que guardo a sete chaves – complementou.
Quando Ana Cadáver finalmente entrou na gigantesca tumba onde funciona o cartório, um retrato numa das paredes chamou-lhe a atenção. Maria Múmia, que estava um pouco atrás da moça, adivinhou os olhares da jovenzinha e adiantou:
-O nome dele é Arlindo Caveira... É filho único de dona Morta da Silva, a dona Mortinha... Sou a madrinha de rebatismo dele.
Ana, num pequeno sobressalto de susto, voltou-se para dona Maria Múmia e, curiosa, perguntou exclamativamente:
-Rebatismo?!
 -Sim, querida... Todos que aqui chegam precisam ser rebatizados na sua nova condição.
-Eu também serei rebatizada, dona Maria Múmia?
-Claro que sim, meu bem... Mas somente depois que você encontrar uma madrinha de alma.
-Eu é que escolho essa madrinha?
-Não... A escolha é feita entre as essências almáticas que habitam cada um de nós... Elas se reconhecem num momento de pura sintonia.
Pensativa, Ana desviou novamente o olhar para o retrato de Arlindo.
-E... Bem... Esse moço... – mas Ana não conseguiu dizer o que queria dizer. Faltaram-lhe as palavras propícias.
-Ele é defunto solteiro, sim – adivinhou novamente Maria Múmia.
Espantada, Ana Cadáver arregalou os grandes olhos azulados para a serventuária. Maria Múmia achou graça e carinhosamente disse:
-Faço muito gosto em ser sua meio-sogra.
Ana, com sagacidade, compreendeu, nas duas conversas que participara até ali, naquele novo mundo, que as coisas funcionavam sem muitas complicações. A moça começava a sentir uma alegria inexplicável na morte. E admirava a si mesma por sua tão rápida adaptação. Ana Cadáver, então, conscientizou-se: já havia tido a sua primeira grande lição de morte.
Maria Múmia, sem mais a dizer, estendeu à moça um pedaço de papel, onde se lia: “Ruela da Luz da Lua, 25, tumba verde-amarela”. E orientou:
-Procure por Lua Sequelada... Ela tem uma vaga em sua tumba... Você ficará lá hospedada até que seu sepulcro definitivo seja providenciado.
-Sim, senhora, dona Múmia... Muito obrigada pela primeira lição.
Maria Múmia nada respondeu em agradecimento, apenas recomendou:
-Esteja aqui amanhã, querida, sem falta!
Ana desejou saber mais sobre Arlindo, porém, não encontrou forma de buscar assunto. Maria Múmia compreendeu mais uma vez a face iluminada da defuntinha, mas deixou o curso natural das coisas no comando.
“Ruela da Luz da Lua, 25” – dizia Ana em pensamento enquanto caminhava por entre jazigos de todas as cores e tamanhos.  -ACHEI! – gritou repentinamente. –Tumba verde-amarela – e olhou por todo ao redor. -Não vejo outra – concluiu.
Ela ia bater à porta da tumba abrasileirada quando escutou uma voz:
-Ana Cadáver?... Você é Ana Cadáver?
Ana virou-se e ficou encantada com o que viu: uma defunta toda iluminada de luz de lua. Faltava-lhe todo o braço direito. Seus cabelos assemelhavam-se a longas cordas de amarrar. A defunta tinha olhos pesarosos de uma saudade que já nem ela sabia do que ou de quem era.
-Lua Sequelada! – exclamou Ana Cadáver. -Só pode ser você: o luar que te brilha... A falta do braço direito...
-Sim, Ana, sou Lua Sequelada – respondeu a defunta maneta enquanto ia puxando para dentro de sua morada a defunta sem-tumba. –Venha comigo, vou te mostrar o teu lugarzinho provisório.
Dentro da tumba – na verdade uma kitchetumba –, as novas amigas se puseram em reconhecimento de almas enquanto saboreavam um denso cálice de formol oferecido por Lua.
Ana, um pouco zonza com a estranha bebida, e um pouco acanhada, perguntou sobre Arlindo.
-Arlindo, o lindo? – respondeu Lua toda interessada.
-Já que tudo aqui é às claras, vou logo te confessando, Lua: desde o primeiro momento que botei os meus olhos-de-morta no retrato de Arlindo, sinto meu estômago repleto de borboletas-de-amor a esvoaçarem dentro do meu estômago.
-Não são borboletas-de-amor, querida defuntinha.
-Não?! São o quê, então?!
-São vermes - declarou Lua com toda a naturalidade de quem já nem se lembra mais da data do próprio óbito.
-Vermes?! – horrorizou-se Ana Cadáver.
Lua, então, revela para a amiga:
-São enormes vermes carniceiros a te devorarem o estômago... Você está morta, esqueceu?!
Ana Cadáver, completamente estupefata com a verdade óbvia, deixou-se cair em desmaio sobre a cama-caixão de Lua Sequelada.




Capítulo III

A BELEZA D’ALMA DE ALMA LUZ


Dentro da kitchetumba de Lua Sequelada, um delicioso cheiro de luz pairava no ar. O cheiro vinha do forno do fogão almático da morta. Lua assava um abençoado bolo de luz, sua receita secreta. Ana Cadáver, aos poucos, recobrou os sentidos, talvez despertados pelo cheiro agridoce (que tem a luz) vindo do bolo.
-Lua, onde está você? - perguntou a defuntinha ainda um pouco desorientada.
-Ah, finalmente a minha amiguinha enamorada despertou! - respondeu prontamente a outra.
-Desmaiei porque fiquei assustada com os vermes que devoram estômagos.
-Não, querida, você desmaiou de fome!
-Fome?! Também aqui sentimos fome, Lua?
-Sim... Mas é fome de luz espiritual... Por isso preparei um bolo de luz pra você, meu bem.
-Oh, obrigada, minha irmãzinha!
-Muito bem, Ana, você está certa... No Aqui, somos todos irmãos de alma.
Ana e Lua comeram demoradamente metade do bolo. Os semblantes das moças emanavam pequenas estrelas brilhantes a cada pedacinho que se misturava às suas essências metafísicas.
-Sinto uma leve comichão a cada pedacinho desse bolo – suspirou Ana.
-É a paz a percorrer o teu interior, querida.
-Nunca imaginei que um dia eu fosse me alimentar de paz – disse Ana cheia de encantamento.
Lua Sequelada, ao término da refeição, serviu-se de mais um cálice de formol. Ana recusou a oferta da amiga. Em pé, na pequena grade-janela de sua morada, Lua avistou João Catatumba à porta do sepulcro de uma além-túmulo de nome Alma Luz.
-Sinto que teremos novidades por estas bandas – professou a defunta maneta. -Nosso parteiro da vida eterna está neste momento conversando com Alma Luz.
-Quem é Alma Luz, Lua?
E a morta se pôs a descrever a beleza d’alma de Alma Luz:
-É ela uma das almas mais leves que já vieram para este mundo... Alma é uma fotógrafa de nossas essências almáticas... Há muito que essa nobre além-túmulo almeja a maternidade de um filhinho para alegrar-lhe a morte.
-E João Catatumba vai lhe trazer esse filho?
-Sim... João Catatumba jamais bate à porta de uma morada sem uma missão iluminada.
Um silêncio doce tomou conta das duas amigas. A brisa morna que soprava do lado de fora da tumba parecia trazer um pouco do diálogo entre João e Alma para os aguçados ouvidos de Lua Sequelada.
Na soleira da porta do jazigo-capela de Alma Luz, João Catatumba deu a boa nova à velha amiga de jornada:
-Ele está chegando, dona Alma! – anunciou o guardião.
-O meu Bernardo, João? Você tem certeza?
-Sim, iluminada amiga... Bernardo Luz... Está bem nítido na certidão de óbito que dona Maria Múmia entregou-me hoje de manhã.
-Oh, meu amigo... Sinto um amor maternal tão grande a invadir a minha essência... É como se meu ventre fosse ele próprio o casulo de meu já há muito amado e esperado Bernardo.
-Sim, Alma... Você é a verdadeira gestante de Bernardo... A essência dele nasceu e cresceu alimentada por teus desejos maternais... É um filho da luz... Da tua luz.
Dito isso, os dois amigos seguiram para debaixo da Árvore Imorredoura. Alma, com olhos marejados de cálido orvalho (composição das lágrimas de quem está morto), pôs-se a esperar, bem debaixo do pequeno casulo de criança, a chegada de sua alminha de luz. Alguns incontáveis minutos depois (no além-mundo não existe tempo contante), o pequeno casulo, em vez do costumeiro trincamento da casca, transfigurou-se gradativamente em tonalidades de luz energética, até que esta desaparecesse completamente. E deixou à mostra um pequeno e frágil menino de três anos de idade – anos estes contados apenas no mundo dos viventes.



Capítulo IV

O AMOR POÉTICO DE ARLINDO CAVEIRA & ANA CADÁVER

         Pela primeira vez em sua jornada de parteiro-encantado, João Catatumba não fez uso de sua rede pega-morto, tampouco precisou aparar a chegada de um além-túmulo. Fora a própria Alma Luz quem recebeu e aparou o recém-mortinho em seus braços iluminados.
-Bernardo, meu filho d’alma tão esperado, mamãe cuidará de você como quem cuida diariamente da própria fé – sussurrou a recém-mamãezinha no ouvidinho direito do pequeno menino, todo ele molhado de luz, o sagrado líquido amniótico de quem se transfigura.
-Alma, querida... Bernardo precisa descansar – advertiu João. -Leve-o para a sua manjedoura almática, tão minuciosamente carpintada por suas mãos abençoadas e cheias de uma sua real vontade, energizada por sua luz de amor incondicional.
Seguindo a recomendação do defunto-amigo, Alma pôs-se a caminhar por uma estreita alameda florida. Bernardo, aninhado em seu colo – este todo remodelado pelo mais sagrado cuidado de mãe –, ainda dormia. João permaneceu à sombra da Árvore Imorredoura, contemplando aquele momento de simbiótico amor. De volta à sua morada – agora toda banhada de nova alegria e perfumada de esperança –, Alma luz sussurrava cantigas de bem-querer para embalar o repouso do pequeno menino iluminado.
Num pequeno jazigo amarelo-desbotado, vizinho de Alma Luz, um belo rapaz – de semblante descontente, como se esperasse uma felicidade para adoçar a morte – observava, com o coração todo emocionado, a chegada da nova e pequena família da almática vizinha de luz. É ele Arlindo Caveira, filho de dona Morta da Silva, a dona Mortinha, e afilhado de dona Maria Múmia, de quem já falei no início desta fantasmagórica narrativa.
-Que a força do amor transcendental esteja sempre a enlaçar vocês, meus queridos amigos de jornada – disse baixinho e respeitosamente o moço.
De repente chegou aos ouvidos de Arlindo um barulhar de folhas secas, como um gemido de revolta a desaprovar o pisotear de pés incautos. O moço olhou para o pequeno horizonte: congelou-se. Era Ana Cadáver, toda cambaleante, toda se esbarrando em jazigos e vasos de flores esquecidos. Ela vinha acompanhada de Lua Sequelada, que trazia à mão mais um de seus cálices de formol.
Foi assim o breve e para sempre enlaçar de almas entre Arlindo & Ana:
Os dois foram se achegando; o ao redor, aos poucos, despareceu de suas vistas; o espaço foi tomado por uma fina névoa; Arlindo olhou profundamente nos olhinhos arredondados e azulados de Ana e teve a tão esperada resposta: a felicidade que adoçaria a sua morte, enfim, estava a contemplá-lo; e ele a ela; Ana, com o estômago repleto de borboletas-de-amor (agora ela tinha certeza de que não eram vermes devoradores de gente morta), respirava e transpirava pelos poros a essência da paz absorvida através da degustação do bolo-de-luz da alma-amiga Lua Sequelada. E mais uma vez Ana Cadáver teve outra certeza, e a cantou nos ouvidos de Arlindo:
-Foi por isso que eu vim antes do tempo, meu amor: escutei o teu desassossego d’alma. Aquieta, agora, o teu coração, pois o meu já agora esqueceu o que é saudade.
O rapaz, completamente enfeitiçado de reminiscências, nada precisou responder. Apenas tomou a moça nos braços e beijou-lhes os lábios úmidos e cinzentos.
No alto, a lua (não a defunta Sequelada, entendam bem), sarapintada de estrelinhas brincalhonas ao seu redor, embalava o reencontro de dois além-túmulos que se precisam desde um tempo que a imaginação jamais poderia acompanhar.
Depois do beijo, ainda sem voz para a amada, Arlindo retirou um pequeno papel do bolso, apanhou do ar um pequeno vaga-lume, e, com o traseirinho luminoso do pequeno inseto, desenhou um singelo poema para Ana; entregou-o à defuntinha enamorada. Tremeluzentes, os olhinhos de Ana alimentavam-se, agora, não da paz que existe no bolo-de-luz de Lua Sequelada, mas do amor almático que brota das palavras de versos sinceros. A moça, toda ela bailando no centro de uma ciranda de querubins, leu o pequeno poema do amado em serena voz cantante:

Olhei profundamente
Nos olhinhos de Ana.
O azul olhar dela,
Ah, Deus! Não me engana:
É ela o meu amor,
E eu a sua chama.

Amor, Arlindo.



Capítulo V

O PROJETO TUMBILIÁRIO DE JOSÉ SARCÓFAGO

Depois de selado o amor de Ana & Arlindo com versos tão puros, ambos se despediram com olhares de promessas; jantariam mais tarde na tumba de Arlindo e sua mãe, dona Mortinha. As duas moças-defuntas seguiram para a tumba-escritório de José Sarcófago, o empreendedor responsável pela aquisição de túmulos em Defuntópolis.
Pouco tempo depois, Lua deu três toques na tampa da tumba do empreendedor tumbiliário.
-Ah, mas quem é morta sempre aparece! – disse sorridente o simpático morto das tumbas próprias.
-José, esta é Ana Cadáver – disse a morta Sequelada com a mão esquerda (a única que ela tem) no ombro direito da amiga. –Ela é uma recém-chegada aqui em Defuntópolis, e está hospedada provisoriamente em minha tumba. Viemos aqui para escolher uma bonita morada para ela – e adiantou: -Com um precinho bem camarada... Veja, lá!
-Vieram ao lugar certo, meninas bonitas! – tranquilizou José Sarcófago a outra e, olhando para Ana, acrescentou: -Defuntópolis nunca viu tanta beleza numa alma feminina – em seguida, o defunto galanteador e construtor segurou a mão da defunta Cadáver e beijou-a suavemente.
Minutos depois, Ana folheava um catálogo de moradas. Uma tumba toda revestida de tijolinhos a cativou.
-É esta! – disse a moça mostrando a imagem da tumba de tijolinhos para José.
-Muito bom gosto, menina! – respondeu em aprovação o outro.
-Qual o melhor plano de aquisição, amigo Sarcófago? – perguntou Lua Sequelada.
-Para Ana, farei o mesmo plano que fiz para a sua kitchetumba, Luazinha: suaves parcelas a serem pagas em trezentos anos. Tudo financiado através do plano Minha Tumba, Minha Morte.
-Trezentos anos?! – assustou-se Ana Cadáver.
-Sim, querida!... E vou te dizer: é um tempo que passa muito rápido por aqui; mais quarenta anos e termino de pagar a minha kichetumba – disse Lua para tranquilizar a amiga.
-E como pagarei as parcelas? – quis saber Ana.
-Serão cento e vinte patelas por mês – respondeu Sarcófago.
-Patelas?! – espantou-se mais uma vez a defuntinha. –E onde arranjo patelas?
-Bom... Primeiro você terá de arranjar um emprego, Aninha – respondeu Lua. -Posso ajudá-la nisso. Quanto às patelas, elas são fabricadas por Julião Presunto, o nosso designer de corpos.
-Se é assim, podemos fechar o negócio, Sr. Sarcófago – finalizou Ana Cadáver.
Ana assinou toda a papelada necessária para a aquisição da nova morada. José Sarcófago abriu uma deliciosa garrafa de formol safra 39 a. C., e os três (José, Lua e Ana) comemoraram a nova condição – metafísica – da defunta Ana Cadáver em Defuntópolis.
-Bem, amanhã já posso lavrar os documentos no Cartório Defuntus Adjuntus... O próximo passo é escolher um bom terreno... Ah! – Lembrou José Sarcófago repentinamente – tenho um excelente terreno na “Ruela dos Literários”, vizinho de Clarice Lispector.
Ana deu um pulo de contentamento.
-Oh, Meu Deus! Quero minha morada nesse terreno, Sr. José!
-Já é seu, Aninha... Já é seu.
Ana e Lua despediram-se de José Sarcófago e puseram-se a caminhar de volta à tumba onde coabitam. A meia distância da kitchetumba de Lua, Ana estancou-se bruscamente no meio da alameda. A amiga perguntou o que estava acontecendo. Ana, olhando fixamente para uma defunta sentada ao lado de um chafariz repleto de estátuas de anjos, perguntou com a voz trêmula, apontando para a morta:
-Quem é aquela mulher sentada na mureta daquele chafariz?
-É Ana Tumba. Uma defunta muito estranha que perambula por este mundo – respondeu Lua Sequelada.
-Meu Deus, não poder ser! – disse Ana num assombro. E novamente desfaleceu, desta vez amparada pelo único braço da amiga.


Capítulo VI

ANA CADÁVER & ANA TUMBA: UM ACERTO DE CONTAS

-Ana, querida, acorde!
Ana Cadáver semicerrou os olhos. Depois sentou-se vagarosamente com a ajuda de Lua Sequelada. Esfregou o nariz e perguntou para a amiga:
-Lua, o que foi isso que você esfregou no meu nariz?
-Formol, meu bem, formol. Levanta até defunto!
-A moça do chafariz... Preciso falar com ela, Lua...
-Ela ainda está lá.  Não tirou os olhos-de-morta de cima da gente um só segundo.
-Vou até lá falar com ela.
-Vá Ana... Mas lembre-se: nem tudo o que ela disser corresponderá à verdade... Não para esta dimensão.
-Não compreendo algumas coisas que me dizem por aqui.
-Não te preocupe, queirda... Tudo se encaixará no momento que tiver de ser... Apenas confie na tua essência almática.
Ana levantou-se e caminhou vagarosamente em direção à moça-fantasma do chafariz. Ela, Ana Tumba, fitava Ana Cadáver com olhos inertes, mal piscava. Ana Cadáver, já de frente para Ana tumba, balbuciou as primeiras palavras de contato:
-Você... Nós... Minha irmã... Eu... Oh, que surpresa!
-Sim, mana! Sou eu... E vim te dizer que aqui não é o teu lugar. Não a quero neste mundo.
-Mas, Tuquinha... Eu estou tão feliz por vê-la aqui... Não me sinto mais abandonada... Abrace-me, por favor.
-Não, Ana... Não quero abraçá-la... Aqui não é o teu lugar, já disse... Vá embora daqui, agora!
-Mas, eu, eu... Conheci um rapaz, Arlindo e...
-Esqueça-o!... Farei tudo o que estiver ao meu alcance para que vocês não fiquem juntos nesta terra de esquecimento.
-Mas irmã, eu...
-Nem mais uma palavra, Ana Cadáver!
Ana Tumba levantou-se e pôs-se a caminhar por uma alameda fria e cinzenta que cortava uma quadra repleta de imensas tumbas góticas; o mármore branco dava ao espaço um ar de paisagem congelada. Ana Cadáver correu os olhos ao redor e não avistou a amiga Lua Sequelada. De repente, a defuntinha sentiu umas mordicadas na canela direita. Ela olhou na direção dos pés e pôs-se a rir.
-Ah, seu danado! É você? Veio me dar um recado do seu dono?
Era Sombrito, o cãozinho-caveira de estimação de Arlindo Caveira. O pequenino montinho de ossos latia alucinadamente como se quisesse dizer a Ana para que o seguisse. Ela compreendeu.
-Ah, já sei... Você quer que eu te siga... Pois bem, meu cupidinho de ossos, vamos brincar de ama segue o mestre, então.
Sombrito, na sequência, como um soldadinho desengonçado, pôs-se a marchar por uma alameda toda iluminada de vaga-lumes. Ana o seguiu feliz porque se encontraria com Arlindo, mas estava com o coração-de-morta apertado devido à insensibilidade da irmã. Depois de um tempo, Sombrito estancou-se na soleira da entrada da tumba de Arlindo e sua mãe, Morta da Silva, a dona Mortinha. Ana nem precisou bater à porta; dona Morta a abriu e, com um sorriso iluminado, recebeu Ana Cadáver com todo o seu amor de mãe.
-Entre, filha minha! Sou Morta da Silva, a mãe de Arlindo... Seja bem-vinda a esta tumba abençoada... Arlindo, agora, só respira por você... E eu só posso querer-te bem... Se faz meu filho respirar, só pode ser amor.
-Oh, Dona Morta, eu, eu... Eu não tenho palavras para...
-Não diga nada, minha flor... Meu filho a espera para o jantar... Entre, por favor!
Ana e dona Morta deram-se as mãos e caminharam para a sala de jantar. Arlindo estava sentado numa pequena poltrona vermelha. Uma doce melodia tomava conta do delicado ambiente decorado por sua mãe. O rapaz estava tocando uma cantiga de amor gótica em seu violino. Os olhinhos azuis de Ana Cadáver transbordaram de lágrimas do mais puro orvalho. E quando a defunta enamorada quis correr para os braços do amado, a porta da tumba abriu-se bruscamente. Um vento forte soprou.  Ana, Arlindo e Dona Mortinha voltaram-se para a direção da porta. Feito uma estátua de pedra, estancada na entrada da morada, estava Ana tumba. Seus olhos ardiam como fogo. A misteriosa morta não estava de bom humor.
-Vou acabar com isso, agora! Eu te avisei, Ana Cadáver!



  
Capítulo VII

UM TRABALHO PARA JULIÃO PRESUNTO, O DESIGNER DE CORPOS

Mais veloz que a luz, Ana Tumba, completamente descontrolada, partiu para cima de Ana Cadáver, e arrancou, num puxão, a orelha esquerda da indefesa defuntinha. Arlindo Caveira, num golpe súbito de pernas, saltou para cima da irmã endiabrada e a lançou por alguns metros. Quando Ana Tumba se levantou para um novo golpe, sentiu um chumaço de algodão tampar-lhes as narinas. A morta perdeu os sentidos e caiu estatelada no chão da tumba. Ana Cadáver, Arlindo e Dona Mortinha entreolharam-se, e depois olharam novamente em direção à porta de entrada da morada.
-Não existe nada melhor que formol, levanta até defunto... Mas derruba, também! – disse Lua Sequelada, com Ana tumba caída aos seus pés.
Ana Cadáver correu ao encontro de Lua e agradeceu a ajuda da amiga, mas a pobre defunta estava cada vez mais confusa com o ódio da irmã, Ana Tumba.
-Eu não entendo... Que mistério é esse? Por que minha irmã me quer longe daqui, Lua?
-Você compreenderá no momento certo, Ana... Não posso te dar as respostas que procura... Não depende de mim... Só da tua alma... Ela, a tua alma, é que precisa acordar.
-Mas...
-Depois, querida, depois. Agora você precisa de alguém para consertar o estrago que Ana Tumba fez na tua orelha esquerda.
-Venha comigo, Ana – disse Arlindo Caveira carinhosamente para a namorada enquanto a puxava pela mão esquerda. -Vou levá-la até Julião Presunto. Ele saberá o que fazer.
-Arlindo...  E quanto a Ana tumba, o que faço? – perguntou dona Mortinha.
-Faça o de sempre, mamãe, o de sempre – respondeu o rapaz.
Arlindo, Ana Cadáver e Lua Sequelada partiram em direção à tumba de Julião Presunto, enquanto dona Morta arrastava o cadáver de Ana Tumba para dentro de um caixão.
-Perdoe-me, filha... Mas tenho de fazer isso... É para o teu próprio bem.
Dona Morta, então, resignadamente, abriu o peito de Ana Tumba com uma tesoura e arrancou-lhe o coração. Era a única forma de neutralizar um além-túmulo fora de controle.
-Agora Ana Cadáver poderá trilhar seu caminho em paz – disse para si mesma a mãe de Arlindo Caveira com o coração de Ana Tumba entre as mãos.
A umas seis quadras dali, um defunto muito forte abria a grande porta de seu jazigo:
-Quem ousa desconcentrar meus trabalhos, posso saber?
-Perdão, Senhor Julião Presunto... É coisa urgente – disse Arlindo para o defuntão.
-Ah, são vocês!... Lua e Arlindo... Mas... Quem é essa defuntinha azulada e assustada e... sem uma orelha?
-Ela é Ana Cadáver, Senhor Julião, minha namorada.
O rosto de Ana Cadáver avermelhou por uns instantes. A defunta ficou toda boba por ouvir “minha namorada” da boca do amado.
-Hum, namorada... Que belo casal! Em que posso ajudá-los?
-Bem, como pode ver, Ana precisa de uma nova orelha.
-Ah, sim, entrem... Acabei de receber uma remessa de novas orelhas... Vamos ver se temos uma que sirva para a tua defuntinha.
-A sua tumba-atelier é um lugar fascinante, Senhor Julião – disse Lua Sequelada, e revelou: -Meu sonho é ter um braço novo assinado por você.
-E por que ainda não me procurou, menina?
-Porque um braço custa mais patelas do que eu poderia ganhar por toda a eternidade – respondeu prontamente Lua com um riso largo.
-Não te preocupe, filha... Vou resolver o problema de orelha da menina Cadáver e depois dou um jeito no teu braço.
-Mas, Senhor Julião, eu...
-É presente, filha, presente...
Os olhos de Lua encheram-se de lágrimas de orvalho. A defunta maneta correu para Julião Presunto e o abraçou com ternura.
-Obrigado... Muito obrigado!
-Fica em paz, querida – disse emocionado o designer.
Julião conduziu Ana Cadáver para trás de um biombo, e, com a moça deitada numa maca, pôs-se a trabalhar em sua orelha. Depois de um tempo, o designer chamou por Arlindo e Lua para mostrar aos dois a intervenção que havia acabado de fazer na mocinha-defunta.
-Vejam, que obra-prima! – comemorou o defuntão.
Arlindo Caveira e Lua Sequelada, horrorizados e completamente sem voz, nada puderam dizer.
-Não gostaram? – perguntou Julião aos dois mortos petrificados. –Bom, é melhor eu saber a opinião da nova dona da orelha magnífica que acabei de implantar.
Ana Cadáver nada dizia, apenas olhava assustada para o amado e a amiga. Julião, então, entregou-lhe um espelho. Ana, quando se viu no pequeno objeto, deu um berro que ecoou por toda a Defuntópolis.
O defunto atrapalhado havia implantado uma enorme orelha de abano na pobre Ana Cadáver.

  

Capítulo VIII

AS LIMOUSINES DE JUCA COVA

Julião, assustado com o berro de Ana Cadáver, precipitou-se na direção de Arlindo e Lua. Os três – abraçados entre si – olhavam para a moça com olhares de zombaria. Ao levantar-se da maca, Ana tombou a cabeça – devido ao peso da nova orelha implantada – para o lado esquerdo. Foi o suficiente para que os outros se desmanchassem em deliciosas gargalhadas.
-Ai!  Que enrascada o senhor me meteu, hein, seu Julião Presunto?! – na sequência, Ana também desatou a rir.
Com toda a sua habilidade de designer, Julião, em pouco tempo, consertou a trapalhada que fizera. Ana voltou a ter uma linda orelha esquerda, um pouco menos pálida que a direita, é verdade, pois a nova orelha implantada mal havia passado pela missa de sétimo dia realizada no lugarejo de onde viera.
-Agora que tudo voltou à normalidade – disse Julião para Ana – quero levá-la com seus amigos para um passeio de limousine para desfazer qualquer possível má impressão a meu respeito.
-Oh, seu Julião, eu não estou brava, eu... – Julião interrompeu a moça Cadáver e foi logo retrucando: -Não aceito um não como resposta.
Dito isso, seguiram todos para a agência de limousines de Juca Cova, um morto todo cheio de salamaleques que realiza viagens e transportes de luxo no além-mundo.
Lá chegando, ao adentrarem o imponente túmulo de Juca Cova – onde o defunto morre e trabalha com sua agência de viagens –, Julião e seus amigos estancaram desconsertados à porta da morada do empertigado agente. Juca estava num momento muito íntimo de sua condição metafísica. Sentado de frente para uma penteadeira estilo retrô, o defunto, com uma escova de cabelos toda sarapintada de cor-de-rosa, alisava tranquilamente sua cabeleira encaracolada, e, ao som de Amy Winehouse (outra além-túmulo), tentava acompanhar a canção Rehab completamente desafinado.
Julião, Ana Cadáver, Arlindo e Lua Sequelada puseram-se novamente a gargalhar (hoje o dia estava para isso). Juca Cova, ao ouvir o estardalhaço das risadas, assustou-se, e, ao virar-se, se desequilibrou em cima da banqueta – com assento almofadado revestido de couro na cor vermelha – e caiu de quatro sobre o assoalho frio de sua tumba. Uma nova onda de gargalhadas se fez ouvir. O morto, todo atrapalhado, levantou-se rapidamente e recompôs como pôde sua pose de homem das viagens e transportes de luxo.
-Pois não, senhores e senhoritas, em que posso ajudá-los? – disse então o agente – solenemente – como se nada tivesse acontecido.
-Queremos alugar a sua melhor limousine para um passeio pelos recantos de Defuntópolis, Senhor Juca Cova – respondeu, também solenemente, Julião Presunto.
-Ah, sim... Acompanhem-me até à garaĝo das limousines, por favor! (Juca costuma pronunciar algumas palavras em esperanto para demonstrar uma espécie de refinamento exótico, como garaĝo, que significa garagem).
Ana encantou-se com o carro-limousine-funerário vermelho. E assim todos partiram para um tour por Defuntópolis.
Arlindo foi ao volante, com Ana ao seu lado; Julião e Lua foram no banco traseiro. Juca Cova, acompanhando a limousine – com as vistas – que sumia pela estrada lateral da cidade-cemitério, acenava com um lenço branco e repetia ainda mais empertigado: -Ĝis poste!... Ĝis poste!... (Até mais ver! em esperanto).
Algum tempo depois, na segunda curva da estrada, o carro serpenteou repentinamente – depois de passar com a roda dianteira direita por cima de um crânio abandonado. Ana desequilibrou-se e, como o carro estava com a capota baixada, e não havia cinto de segurança (cinto de segurança para quê?), a moça caiu para fora do veículo ainda em movimento. Todos ouviram um forte estalido, como se fosse uma massa dura e uniforme se chocando contra uma massa achatada de metal. Era Ana, que, ao cair, bateu com a cabeça na calota da roda direita traseira do veículo. A poeira acinzentada que subiu do longo rastro da freada do veículo encobriu a todos. Um silêncio seco se fez no ar.


  
Capítulo IX

UMA CIRANDA DE LUZ PARA ANA CADÁVER

Arlindo Caveira pisou fundo no freio da limousine-funerária. A geringonça parou alguns metros depois do local onde Ana Cadáver despencara feito jaca madura. O rapaz, aos prantos, saiu em disparada para socorrer a amada, seguido dos amigos Julião Presunto e Lua Sequelada.
-Ana... Ana... Meu Deus! – gritava o defunto enamorado, e, ao alcançar a moça, pôs-se a falar com doçura na voz: -Ficará tudo bem, querida... Nosso amor perdurará por toda a eternidade – dizia ele ao mesmo tempo em que afagava os cabelos louros e o rostinho azulado da doce cadaverzinha.
No suave silêncio da atmosfera do além-túmulo, quebrado apenas pelos murmúrios de Arlindo, uma luz de um azul leitoso formou-se, em forma de círculo, um pouco acima das cabeças dos que estavam de pé, Julião e Lua. Um pequeno ser – todo esverdeadinho – transfigurou-se do espaço luminoso como quem atravessa uma espécie de portal. Era Zuluzinho, um fantasma-criança, escudeiro de Alma Luz, a fotógrafa de almas. O curioso serzinho aproximou-se do rostinho de Ana Cadáver e sussurrou em seus ouvidos:
-Aninha, todos os além-túmulos de Defuntópolis a querem muito bem. Já está na hora de você voltar para a sua casinha, linda menina – e, em seguida, Zuluzinho pediu para que Arlindo e Julião levassem Ana com cuidado e a deitassem sobre o centro de um gramado – também circular – a poucos metros do carro-funerário-limousine.
-Deitem-na com cuidado, com o ventre para o céu – disse uma voz que vinha um pouco mais afastada de todos. Era a voz de João Catatumba, o guardião dos mortos defuntópolenses.
Dito isso, João – que trazia nas mãos um livro de capa dura azul – seguiu até o corpinho desmaiado de Ana Cadáver e ajoelhou-se rente ao seu tronco. O defunto abriu o livro e, com os olhos fechados e a mão sobre o coração da moça, pôs-se a ler um pequeno texto de grande delicadeza:
“Mas quando o homem está morto, uma vez que seu corpo, separado do seu espírito, está consumido, em que se torna ele? O homem estando morto uma vez, poderia reviver de novo? Nessa guerra em que me encontro todos os dias da minha vida, espero que minha transformação chegue.” (*)
João, na sequência, levantou-se e pediu para que os presentes – Arlindo Caveira, Lua Sequelada e Julião Presunto –, unindo-se a ele, se dessem as mãos de modo a cirandar Ana Cadáver. À medida que os amigos cirandavam o corpinho da defuntinha, novas mãos uniam-se às deles. E, assim, transfigurando-se, um a um, do imenso círculo azul leitoso que lembra um delicado portal, Alma Luz, Ana Tumba, Dona Morta da Silva, Maria Múmia, Juca Cova e José Sarcófago, fizeram aumentar uma espécie de energia transcendental para o despertar de Ana Cadáver. Sombrito, o cãozinho de ossos, todo espavorido, corria alucinadamente atrás de Zuluzinho na tentativa de alcançar seu rabicho esverdeado. O pobre fantasminha esgoelava feito criança com medo do Abaporu (versão do bicho-papão na visão da artista plástica brasileira Tarsila do Amaral).
Os serezinhos corriam cirandando a ciranda que cirandava nossa querida e cirandada Ana Cadáver.
(*) Pequeno texto lido por João Catatumba: (Job, cap. XIV, v. 10,14. Tradução de Le Maistre de Sacy), retirado de “O Evangelho Segundo o Espiritismo” de Allan Kardec.



Capítulo X

TODO NOVO DESPERTAR É SEMPRE REPLETO DE NOVAS ESPERANÇAS

“Sonhei que renunciara à vida. Convertera-me em vigilante noturno e guardião dos túmulos – na montanha – junto ao solitário do castelo da Morte. Eu respirava a atmosfera de eternidades reduzidas a pó. Minha alma jazia sufocada e poeirenta. E quem poderia fornecer um pouco de ar à alma nesse lugar? Rodeava-me a claridade da noite e a seu lado se agachava a solidão. Assim para mim passava, deslizava o tempo, se é que ainda se podia falar em tempo. Que podia eu saber a respeito? Mas finalmente aconteceu alguma coisa que me despertou. E mil rostos de crianças, de anjos, de corujas, de loucos e de borboletas do tamanho de crianças se riam com sarcasmo e zombavam com grande tumulto de mim. Eu tinha um medo horrível. Caí no chão e gritava de pavor como nunca gritara. Mas foi meu grito que me despertou e, então, tornei a mim.” (NIETZSCHE, em “Assim falava Zaratustra”).

Deitada em seu leito de Bela Adormecida, Ana Maria Riviera Soledad, impulsionada por um sobressalto de angústia – seguido dum profundo resfolegar de quem volta de um afogamento –, levantou meio corpo. Sentada na cama, recobrava a consciência. O quarto, apenas iluminado com a fosca luz de uma luminária confeccionada em papel crepom, deixava o ambiente com uma atmosfera febril. Arlindo Soledad, acomodado numa pequena poltrona vermelha, velava pacientemente a amada esposa. A moça correu lentamente os olhos azuis à procura de seu homem, e, antes de vislumbrá-lo, teve sua mão direita delicadamente envolvida por ele, que a aquietou:
-Não se assuste, minha querida... Estou aqui para ampará-la.
-Quanto tempo eu dormi desta vez, Arlindo? – quis saber a moça.
-Trinta e dois dias, meu bem.
-Menos que da última vez – lembrou Ana.
-Sim... É como se o processo precisasse de menos tempo a cada crise... Até findar-se.
-Ou até que eu parta de vez – complementou a esposa num suspiro melancólico.
-Não pense, assim, Ana... Não temos controle sobre o depois... Tudo o que nos cabe é viver esses seus retornos entre um apagamento e outro – quis amenizar Arlindo o sofrimento da mulher.
Enquanto Ana Maria tomava um relaxante e saudoso banho de banheira, Arlindo deu alguns telefonemas para alguns amigos muito especiais que acompanham o drama vivido pelo casal há algum tempo.
Horas depois – já era noitinha –, Ana, sentada na poltrona vermelha, folheava um pequeno livro de capa dura azul. Arlindo surgiu na soleira da porta do quarto pisando suavemente; alinhou-se ao batente, e, com um pequeno sorriso, fitou com ternura a mulherzinha.
-Estão todos aí, novamente? – perguntou Ana com um brilho diferente no olhar.
-Sim, querida... Todos... E será sempre assim se preciso for.
Arlindo, então, estendeu a mão direita para Ana e puxou-a delicadamente da poltrona. Os dois caminharam abraçados até o patamar da escadaria da casa que dá para o andar de baixo. A espaçosa sala, como das outras vezes, estava em clima de festa, como se para receber quem voltava de uma longa viagem. Era Ana voltando de um tempo e de uma dimensão que só ela compreendia. A moça avançou alguns degraus escada abaixo e foi amparada por Ana Tereza Riviera, sua irmã gêmea. As duas enlaçaram-se num doce abraço de verdadeiro amor fraternal, como sempre acontecera nas outras ocasiões. Num degrau mais abaixo, um rapaz de sorriso largo, aguardava também o seu abraço de boas-vindas. É ele o Dr. João Bráz, um médico obstetra, grande amigo de Arlindo.
-Quero registrar este momento numa bela tela pintada a óleo – disse num tom mais alto, Alma Graciosa, uma talentosa artista plástica, amiga de longa data de Ana Soledad.
As amigas abraçaram-se longamente. Ana, depois, perguntou por Luana Flores, a eficiente secretária que de tudo cuidava durante as suas ausências de vida.
-Está logo ali – respondeu Alma apontando para uma moça de cabelos vermelhos e o braço direito ausente.
A moça preparava um dry Martini enquanto conversava animadamente com Juca Telles, diretor comercial de uma grande agência de viagens onde Arlindo também é colaborador. Os dois falavam sobre a excêntrica aventura de José Landes, um amigo em comum de ambos, que resolvera construir um condomínio de casas auto-sustentáveis no alto de uma serra nos confins do Rio Grande do Sul. Na primeira prova de terraplanagem, o terreno cedera e formara uma enorme cratera, como se um meteorito, aflito de tanto despencar do infinito, resolvesse justo ali descansar a sua impaciência.
-Queridos, por favor! – interrompeu Marta da Silva Soledad, mãe de Arlindo, a animada conversa entre Luana e Juca. -Preciso de ajuda com o bolo de boas vindas – ela precipitava da cozinha portando um bolo todo enfeitado de rosas brancas, as preferidas de sua nora, Ana Maria.
Na ausência de Juca, que atendia ao pedido de Marta, Luana aproveitou o espaço de tempo para saudar Maria Dóri, uma importante curadora de um museu paulistano. Maria, numa animada conversava com Julião Lambardino, um famoso designer de próteses humanas, explicava sobre o curioso processo de mumificação dos faraós, o assunto preferido da curadora.
Ana Maria e Arlindo têm uma vida cercada de pessoas e fatos excêntricos. São felizes porque também eles vivem num tal carpe diem: sabem que o seu tempo é a exata medida de suas reais vontades e necessidades – nem mais, para não saturar-lhes os espíritos, nem menos, para não lhes abrir a corrente da melancolia.
E naquela noite de mais uma especial reunião entre amigos que se precisam, uma leve claridade da lua banhou e abençoou, através da larga janela envidraçada da grande sala da casa de um casal cheio do mais puro bem-querer, a celebração da verdadeira amizade entre pessoas que carregam dentro de si o sopro da VIDA.
Do alto, eu, o autor deste conto, feito um pequeno pássaro a atravessar tranquilamente o céu dessa turma em festa, desviei lentamente o olhar, e vi, com alegria no coração, o pequeno menino Bernardo, filho de Alma Graciosa, arrastando de um lado para o outro, pela cauda, o cachorro Bugaboo, a alegria de Arlindo Soledad durante as ausências de sua mulherzinha dorminhoca e sonhadora. O menino, que ora puxava o cachorro pela cauda e ora dava a impressão de conversar com alguém ao seu lado, parecia brincar com seu amiguinho imaginário, o fantasminha Zuluzinho.  Então fechei suavemente os meus olhos de passarinho e agradeci a oportunidade mágica de aprender com o mundo dessas incríveis almas.
“Viva a VIDA!” – disse eu com o coração. E continuei o meu voo em busca de mais uma aventura para contar para vocês, meus queridos e ilustres leitores.


Que mal há?

Que mal há
Morrer de amor?
Que mal há
Sentir essa dor?
Que mal há,
Se houver o calor?
Se a chama é grande,
O amor inflama;
Se o amor é tosco,
A alma reclama.

         De Ana Maria para Arlindo, com amor.




FIM


Éd Brambilla. XIPOCOS. Mini-romance gótico. 2014/2015.

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