“Existe um
inferno na Terra. Muitos vão parar
lá por diversos motivos. E quando essas
pessoas saem desse lugar, levam na alma uma
espécie de "MARCA SOCIAL
REGISTRADA". São homens e
mulheres que adquirem um mesmo rosto, uma mesma
história, um mesmo significado e um mesmo nome.
Qualquer nome!
No SISTEMA CARCERÁRIO, o INFERNO É MAIS NO FUNDO!”
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Entrevista (fictícia) com um
ex-presidiário, numa mesinha de boteco (homem com bom vocabulário; apenas as respostas do entrevistado
foram transcritas no texto; entrevistador “off”; homem
bebendo e fumando o tempo todo):
-Por que eu fui parar
no inferno?!
(breve silêncio)
-Eu tinha três bocas pra sustentar... E nem incluo a minha
na conta... Você sabe o que é isso, seu moço? Você têm mulher e filhos?
(breve pausa para um trago no cigarro)
-Você até pode dizer coisas do tipo “trabalho honesto”,
“pedir ajuda na Assistência Social” ou “recorrer aos Amigos”... Eu tentei, seu
moço!... Juro que tentei... Mas eu não tive tempo pra “blá blá blá”... Eram
três bocas reclamando...
(mais um trago no cigarro)
-Entrei no primeiro supermercado que vi... Peguei o que
precisava... Não vou mentir pro senhor, que não sou dessa laia de mentirosos
que existe em todo lugar... No meio do que “de comer” tinha uma garrafa de
uísque, também, porque um homem, às vezes, precisa de um consolo mais
requintado...
(mais um trago no cigarro)
-A “piranhazinha” lá do caixa me sacaneou... Mandei ela
ficar “pianinha” enquanto eu mostrava um 38 de brinquedo pra ela... A “piranha”
acionou um alarme embaixo do caixa... Duas horas depois eu já estava todo
ferrado...
(mais um trago no cigarro, com olhos lacrimejando)
-Lá no inferno que me enfiaram mal tinha lugar pra quatro...
Contei mais de vinte na cela... Passei uma semana dormindo agachado debaixo de
uma goteira... Só depois é que resolveram meu caso... E foi à revelia... Me
enfiaram pela segunda vez no “chiqueirinho” do camburão... E dessa vez demorou
bem mais que a primeira vez pra eu chegar num inferno ainda maior, seu moço...
(breve silêncio)
-Onde eu fiquei uma semana era só o purgatório... O inferno
é mais no fundo...
(soco na mesinha do bar)
-Lá, rapaz... Você tem conhecimento que eu sei... Lá, você
não sobreviveria... Tive de aprender a dissimular... Ninguém é culpado de nada
no inferno maior... A culpa é sempre dos de fora... Toda gente presa, no fundo,
é tudo vítima dessa merda de sistema... Tudo começa lá na molecagem... Entende?
Não vou ficar falando do percurso porque você entende dessas coisas melhor do
que eu...
(trago no cigarro)
-Só
deixei de ser “soldadinho do governo” depois de seis meses comendo pão com
banana... E só saí porque tive alguém por mim aqui fora... Mas não pensa você
que tem sido fácil, não... Carrego uma tatuagem estampada... E não é na cara
não, rapaz... É na minha “ficha”... Faz tempo que vivo de “bicos”... Não me dão
emprego fixo... E tudo são desculpas... Mas eu sei que “puxam” minha “ficha”...
(trago no cigarro)
-Mas a gente tem de viver, não é mesmo? Então eu vivo do que
me oferecem... Não acho isso vergonha...
(breve silêncio)
-Vergonha eu sinto quando olho pra minha mãe, que me criou
sozinha... Pra minha avó, que fez o que pôde por mim... Do meu casamento nem
falo, esse foi pro “brejo”... Mas hoje eu ensino meus filhos através do amor...
Através da dor já basta a que eu carreguei e vou carregar pra sempre...
(breve silêncio)
-É isso aí, seu moço! Não tenho mais nada pra contar...
Tenho um “bico” pra fazer ainda hoje...
(o homem levanta-se da cadeira, toma o último gole de
cerveja e se despede do entrevistador):
-Fica na fé, irmão... Depois me fala se a minha história te
serviu pra alguma coisa...
(homem vira as costas e vai embora)
ENTREVISTA
ENCERRADA
Expressão
“soldadinho do governo”: o homem refere-se ao fato de ter
usado um uniforme amarelo durante os seis meses no presídio.
O entrevistado (fictício) pediu
para não ter seu nome citado. Apenas a história, que, nas
palavras dele: “É igual a de milhares por esse mundo afora, seu moço...”
Éd Brambilla. O INFERNO É MAIS NO FUNDO. Entrevista,
02/12/2015.
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