ALMa RaBiScAdA

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

O INFERNO É MAIS NO FUNDO

“Existe um inferno na Terra. Muitos vão parar lá por diversos motivos. E quando essas pessoas saem desse lugar, levam na alma uma espécie de "MARCA SOCIAL REGISTRADA"São homens e mulheres que adquirem um mesmo rosto, uma mesma história, um mesmo significado e um mesmo nome.

Qualquer nome!

No SISTEMA CARCERÁRIO, o INFERNO É MAIS NO FUNDO!
 

Entrevista (fictícia) com um ex-presidiário, numa mesinha de boteco (homem com bom vocabulário; apenas as respostas do entrevistado foram transcritas no texto; entrevistador “off”; homem bebendo e fumando o tempo todo):

            -Por que eu fui parar no inferno?!
         (breve silêncio)
         -Eu tinha três bocas pra sustentar... E nem incluo a minha na conta... Você sabe o que é isso, seu moço? Você têm mulher e filhos?
         (breve pausa para um trago no cigarro)
         -Você até pode dizer coisas do tipo “trabalho honesto”, “pedir ajuda na Assistência Social” ou “recorrer aos Amigos”... Eu tentei, seu moço!... Juro que tentei... Mas eu não tive tempo pra “blá blá blá”... Eram três bocas reclamando...
         (mais um trago no cigarro)
         -Entrei no primeiro supermercado que vi... Peguei o que precisava... Não vou mentir pro senhor, que não sou dessa laia de mentirosos que existe em todo lugar... No meio do que “de comer” tinha uma garrafa de uísque, também, porque um homem, às vezes, precisa de um consolo mais requintado...
         (mais um trago no cigarro)
         -A “piranhazinha” lá do caixa me sacaneou... Mandei ela ficar “pianinha” enquanto eu mostrava um 38 de brinquedo pra ela... A “piranha” acionou um alarme embaixo do caixa... Duas horas depois eu já estava todo ferrado...
         (mais um trago no cigarro, com olhos lacrimejando)
         -Lá no inferno que me enfiaram mal tinha lugar pra quatro... Contei mais de vinte na cela... Passei uma semana dormindo agachado debaixo de uma goteira... Só depois é que resolveram meu caso... E foi à revelia... Me enfiaram pela segunda vez no “chiqueirinho” do camburão... E dessa vez demorou bem mais que a primeira vez pra eu chegar num inferno ainda maior, seu moço...
         (breve silêncio)
         -Onde eu fiquei uma semana era só o purgatório... O inferno é mais no fundo...
         (soco na mesinha do bar)
         -Lá, rapaz... Você tem conhecimento que eu sei... Lá, você não sobreviveria... Tive de aprender a dissimular... Ninguém é culpado de nada no inferno maior... A culpa é sempre dos de fora... Toda gente presa, no fundo, é tudo vítima dessa merda de sistema... Tudo começa lá na molecagem... Entende? Não vou ficar falando do percurso porque você entende dessas coisas melhor do que eu...
         (trago no cigarro)
-Só deixei de ser “soldadinho do governo” depois de seis meses comendo pão com banana... E só saí porque tive alguém por mim aqui fora... Mas não pensa você que tem sido fácil, não... Carrego uma tatuagem estampada... E não é na cara não, rapaz... É na minha “ficha”... Faz tempo que vivo de “bicos”... Não me dão emprego fixo... E tudo são desculpas... Mas eu sei que “puxam” minha “ficha”...
         (trago no cigarro)
         -Mas a gente tem de viver, não é mesmo? Então eu vivo do que me oferecem... Não acho isso vergonha...
         (breve silêncio)
         -Vergonha eu sinto quando olho pra minha mãe, que me criou sozinha... Pra minha avó, que fez o que pôde por mim... Do meu casamento nem falo, esse foi pro “brejo”... Mas hoje eu ensino meus filhos através do amor... Através da dor já basta a que eu carreguei e vou carregar pra sempre...
         (breve silêncio)
         -É isso aí, seu moço! Não tenho mais nada pra contar... Tenho um “bico” pra fazer ainda hoje...
         (o homem levanta-se da cadeira, toma o último gole de cerveja e se despede do entrevistador):
         -Fica na fé, irmão... Depois me fala se a minha história te serviu pra alguma coisa...
         (homem vira as costas e vai embora)


ENTREVISTA ENCERRADA


Expressão “soldadinho do governo”: o homem refere-se ao fato de ter usado um uniforme amarelo durante os seis meses no presídio.

O entrevistado (fictício) pediu para não ter seu nome citado. Apenas a história, que, nas palavras dele: “É igual a de milhares por esse mundo afora, seu moço...”



Éd Brambilla. O INFERNO É MAIS NO FUNDO. Entrevista, 02/12/2015.

Nenhum comentário: