Trata-se de uma história acontecida
no final do verão de mil novecentos e noventa e três, época em que o Rapaz
trabalhava em uma venda, típico comércio de cidade do interior. Logo após o
almoço, ele sentou-se na varanda e entregou-se à deliciosa preguiça que -
depois de um bom banquete - vem para dizer que não fazer nada é uma das
melhores vadiagens da vida, quando a Cunhada, que morava nas dependências da
casa, estava de saída com seu Gol vermelho e, junto com ela, levava sua Filha,
seu Bebê recém-nascido e uma bolsa cheia de acessórios lúdicos. Ao sair, pediu
ao Rapaz que avisasse a seu irmão, o Marido, que ela fora à casa de sua mãe
exercer o papel de filha casada: visitar a mãe pelo menos uma vez por semana. O
Rapaz balançou a cabeça num gesto afirmativo e desviou o olhar para um galo que
tentava defender o ninho de sua amada de um cachorro desavisado que entrara no
quintal sem permissão prévia. O lar do Rapaz era assim mesmo: com galos,
galinhas, periquitos, gatos, etc. Tudo contraditório e em quantidade. Passados
uns trinta minutos, o cochilo fora interrompido por um insuportável bater de
palmas vindo do portão. O Rapaz abriu um olho, depois o outro, resmungou,
bocejou, levantou-se e foi, ainda sem discernimento de sonho e realidade, ao
encontro daquilo que tornaria seu resto de dia uma tormenta. O problema: ali,
com um semblante sério, estava Ele, o portador das terríveis evidências. O
sujeito segurava em suas mãos uma carteira e um sapatinho de bebê encontrados
em uma poça de sangue. Imediatamente cenas de horror povoaram a mente do Rapaz:
a Cunhada sendo abordada por assaltantes que precisavam de um carro para uma
fuga. “Valha-me Deus, mataram a Cunhada e os sobrinhos por conta de um monte de
lata velha em cima de quatro rodas!” - imaginou o Rapaz. Neste exato momento,
parou em frente ao portão o carro de um Casal de mascates que viera cobrar mais
uma das intermináveis parcelas das intermináveis compras da mãe do Rapaz.
Pronto, chegou quem faltava para aumentar a confusão: a Mãe. A imaginação do
Rapaz transformou-se em palavras e fizeram com que a Mãe entrasse em pânico.
Solidários com o desespero de mãe e filho, o Casal Mascateiro colocou à
disposição seu Corcel bege, que precisava de um socorro ainda maior. Enquanto o
Casal e o Rapaz rumavam para o hospital mais próximo, a Mãe encarregara-se de
espalhar o fato. Na recepção do hospital, lá estava o Rapaz, explicando o
suposto acontecimento para a atendente e mostrando-lhe o sapatinho e a carteira
como provas de seu desespero, na esperança de encontrar a Cunhada e os
sobrinhos para que o mistério fosse solucionado. Tudo o que conseguira fora
aumentar ainda mais a confusão. Fora orientado a procurar a polícia, pois
ninguém com as características descritas havia passado por ali. Seguindo a
orientação da atendente e já íntimo dos mascates, o Rapaz seguiu rumo à
delegacia para relatar o que estava tomando uma proporção desenfreada. O
Delegado, envolto à frieza de sua profissão, informara-lhe que era necessário
aguardar vinte e quatro horas para que uma diligência fosse iniciada.
Inconformado, o Rapaz fez tal pressão que não restou alternativa ao Delegado
senão colocar uma viatura no rasto da Cunhada. Sentindo necessidade de dividir
o sofrimento, o Rapaz decidiu procurar a Irmã, que, naquele momento,
encontrava-se em horário de trabalho. Os Mascates, que nunca passavam da porta,
aguardavam pacientemente enquanto o Rapaz levava a Irmã ao desespero sob os
olhares curiosos de todos que trabalhavam no local. Compreensivo com as
circunstâncias, o Gerente permitiu a saída da Irmã, afinal tratava-se de uma
tragédia. Então lá foram eles: o Rapaz, a Irmã e os Mascates unirem-se ao local
onde tudo começou. Em meio à multidão de curiosos que se havia formado em
frente à casa, formara-se também um mercado informal: agentes funerários,
candidatos de diferentes partidos políticos que disputavam a preferência da
família para a realização do transporte ao velório, pipoqueiros, camelôs,
sorveteiros e, por fim, duas viaturas da polícia militar. Após cerca de uma
hora de barulho de sirene, cochichos e ofertas, a surpresa: ela, a Cunhada,
completamente furiosa em seu Gol vermelho, quase atropelando quem estivesse à
sua frente. Para em meio à confusão e desce praguejando e balbuciando palavras
impronunciáveis. O Rapaz, logo que a viu, num misto de felicidade e
incompreensão, correu ao seu encontro e a abraçou chorando copiosamente. Ela,
sem entender absolutamente nada, exigia uma explicação para tamanha
parafernália. O Rapaz contou-lhe que uma carteira e um sapatinho de bebê
ensanguentados foram o pivô de tudo aquilo.
- Ah, então estão com você!? E eu que
pensava ter esquecido no teto do carro! - bravejou a Cunhada.
A explicação: a Cunhada colocara a
carteira sobre o teto do automóvel para acomodar o Bebê no banco traseiro.
Enquanto realizava a tarefa, um dos sapatinhos foi de encontro ao chão, ao que
fora recolhido e colocado junto à carteira. Ao sair, a Cunhada esquecera-se de
apanhar os objetos, seguiu seu destino e, ao passar por uma poça de sangue -
provavelmente de algum animal atropelado minutos antes - os objetos, revoltados
com o desleixo de sua dona, viram naquela poça vermelha a oportunidade de
livrarem-se do esquecimento. Pouco tempo depois, foram encontrados por um homem
que reconheceu o nome da Cunhada no documento e, num gesto de cortesia,
resolveu devolvê-los à dona.
Família
É amor de Mãe
É cuidado de Irmão
É palco de Histórias
É sã Confusão
É proteção de Pai
É crítica sem dor
É briga de irmãs
É fruto de amor
É mistura de crenças
É entrada de estranhos
É cena de Dante
É crescer o rebanho
Éd Brambilla. CONTO. A MORTE DA CUNHADA. 2003.
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