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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A MORTE DA CUNHADA

Trata-se de uma história acontecida no final do verão de mil novecentos e noventa e três, época em que o Rapaz trabalhava em uma venda, típico comércio de cidade do interior. Logo após o almoço, ele sentou-se na varanda e entregou-se à deliciosa preguiça que - depois de um bom banquete - vem para dizer que não fazer nada é uma das melhores vadiagens da vida, quando a Cunhada, que morava nas dependências da casa, estava de saída com seu Gol vermelho e, junto com ela, levava sua Filha, seu Bebê recém-nascido e uma bolsa cheia de acessórios lúdicos. Ao sair, pediu ao Rapaz que avisasse a seu irmão, o Marido, que ela fora à casa de sua mãe exercer o papel de filha casada: visitar a mãe pelo menos uma vez por semana. O Rapaz balançou a cabeça num gesto afirmativo e desviou o olhar para um galo que tentava defender o ninho de sua amada de um cachorro desavisado que entrara no quintal sem permissão prévia. O lar do Rapaz era assim mesmo: com galos, galinhas, periquitos, gatos, etc. Tudo contraditório e em quantidade. Passados uns trinta minutos, o cochilo fora interrompido por um insuportável bater de palmas vindo do portão. O Rapaz abriu um olho, depois o outro, resmungou, bocejou, levantou-se e foi, ainda sem discernimento de sonho e realidade, ao encontro daquilo que tornaria seu resto de dia uma tormenta. O problema: ali, com um semblante sério, estava Ele, o portador das terríveis evidências. O sujeito segurava em suas mãos uma carteira e um sapatinho de bebê encontrados em uma poça de sangue. Imediatamente cenas de horror povoaram a mente do Rapaz: a Cunhada sendo abordada por assaltantes que precisavam de um carro para uma fuga. “Valha-me Deus, mataram a Cunhada e os sobrinhos por conta de um monte de lata velha em cima de quatro rodas!” - imaginou o Rapaz. Neste exato momento, parou em frente ao portão o carro de um Casal de mascates que viera cobrar mais uma das intermináveis parcelas das intermináveis compras da mãe do Rapaz. Pronto, chegou quem faltava para aumentar a confusão: a Mãe. A imaginação do Rapaz transformou-se em palavras e fizeram com que a Mãe entrasse em pânico. Solidários com o desespero de mãe e filho, o Casal Mascateiro colocou à disposição seu Corcel bege, que precisava de um socorro ainda maior. Enquanto o Casal e o Rapaz rumavam para o hospital mais próximo, a Mãe encarregara-se de espalhar o fato. Na recepção do hospital, lá estava o Rapaz, explicando o suposto acontecimento para a atendente e mostrando-lhe o sapatinho e a carteira como provas de seu desespero, na esperança de encontrar a Cunhada e os sobrinhos para que o mistério fosse solucionado. Tudo o que conseguira fora aumentar ainda mais a confusão. Fora orientado a procurar a polícia, pois ninguém com as características descritas havia passado por ali. Seguindo a orientação da atendente e já íntimo dos mascates, o Rapaz seguiu rumo à delegacia para relatar o que estava tomando uma proporção desenfreada. O Delegado, envolto à frieza de sua profissão, informara-lhe que era necessário aguardar vinte e quatro horas para que uma diligência fosse iniciada. Inconformado, o Rapaz fez tal pressão que não restou alternativa ao Delegado senão colocar uma viatura no rasto da Cunhada. Sentindo necessidade de dividir o sofrimento, o Rapaz decidiu procurar a Irmã, que, naquele momento, encontrava-se em horário de trabalho. Os Mascates, que nunca passavam da porta, aguardavam pacientemente enquanto o Rapaz levava a Irmã ao desespero sob os olhares curiosos de todos que trabalhavam no local. Compreensivo com as circunstâncias, o Gerente permitiu a saída da Irmã, afinal tratava-se de uma tragédia. Então lá foram eles: o Rapaz, a Irmã e os Mascates unirem-se ao local onde tudo começou. Em meio à multidão de curiosos que se havia formado em frente à casa, formara-se também um mercado informal: agentes funerários, candidatos de diferentes partidos políticos que disputavam a preferência da família para a realização do transporte ao velório, pipoqueiros, camelôs, sorveteiros e, por fim, duas viaturas da polícia militar. Após cerca de uma hora de barulho de sirene, cochichos e ofertas, a surpresa: ela, a Cunhada, completamente furiosa em seu Gol vermelho, quase atropelando quem estivesse à sua frente. Para em meio à confusão e desce praguejando e balbuciando palavras impronunciáveis. O Rapaz, logo que a viu, num misto de felicidade e incompreensão, correu ao seu encontro e a abraçou chorando copiosamente. Ela, sem entender absolutamente nada, exigia uma explicação para tamanha parafernália. O Rapaz contou-lhe que uma carteira e um sapatinho de bebê ensanguentados foram o pivô de tudo aquilo.

- Ah, então estão com você!? E eu que pensava ter esquecido no teto do carro! - bravejou a Cunhada.

A explicação: a Cunhada colocara a carteira sobre o teto do automóvel para acomodar o Bebê no banco traseiro. Enquanto realizava a tarefa, um dos sapatinhos foi de encontro ao chão, ao que fora recolhido e colocado junto à carteira. Ao sair, a Cunhada esquecera-se de apanhar os objetos, seguiu seu destino e, ao passar por uma poça de sangue - provavelmente de algum animal atropelado minutos antes - os objetos, revoltados com o desleixo de sua dona, viram naquela poça vermelha a oportunidade de livrarem-se do esquecimento. Pouco tempo depois, foram encontrados por um homem que reconheceu o nome da Cunhada no documento e, num gesto de cortesia, resolveu devolvê-los à dona.

Família

É amor de Mãe
É cuidado de Irmão
É palco de Histórias
É sã Confusão
É proteção de Pai
É crítica sem dor
É briga de irmãs
É fruto de amor
É mistura de crenças
É entrada de estranhos
É cena de Dante
É crescer o rebanho

Éd Brambilla. CONTO. A MORTE DA CUNHADA. 2003.

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