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sexta-feira, 5 de maio de 2017

PARANOIA

I. Maria Felicitá quer ser 'normal'

Nesta história o nome da cidade onde a trama se desenrola é Penápolis. É que Penápolis vem de pena – creio eu. E pena é bom para fazer cosquinha na barriga da gente porque rir é bom demais. E a risada frouxa da cosquinha é a melhor coisa do mundo porque é uma risada arrancada de espontâneo.

No bairro do Pó-de-Mico, em Penápolis, vive Maria Felicitá, que se ri de cócegas, de tombo alheio, de gente que escorrega na casca de banana, de gente peidorreira, de mico-leão-dourado que vive na eminência do ‘acabou-se o que era doce’, de tudo a moça se acaba de tanto se rir.

Maria é pura alegria. Em velório ela costuma rir com vontade. Mas é uma vontade cheia de responsabilidade: ela não ri do defunto. Isto é que não. Maria tem medo de assombração; só ri das situações estereotipadas de velório superficial onde ninguém nem está aí com o morto. Quando o velório é sério, Maria fica séria também.

Ocorre que de um tempinho para cá Maria Felicitá vinha sentindo-se meio incomodada com tanta alegria. Ela andou lendo numa revista de psiquiatria sobre transtornos obsessivos compulsivos, bipolaridade, síndrome do pânico, depressão, ansiedade, aracnofobia, homofobia, gatofobia, gentefobia, tudofobia, todos esses transtornos que sempre existiram e só puseram nomes recentemente.

-Gente, quanta gente transtornada! – disse transtornada com tanto transtorno a alegre Maria para si mesma.

E agora Maria Felicitá se pôs ressabiada pensando que é anormal. Pior: enfiou na cabeça que sofre de exclusão social transtornante. Isto lá na maneira de pensar dela.

Num domingo bem cedinho lá foi Maria na banca do Zé Debochado comprar o novo número da tal revista que fala de psiquiatria e de todos esses assuntos do mundo dos miolos. E tinha reportagem falando de uma famosíssima psiquiatra, a doutora Zigmunda Fróida, especialista em desenvolver todo tipo de transtorno já nomeado e até transtorno que ninguém botou nome ainda. E a doutora era perita em desmiolices e batizou tudo quanto foi transtorno pagão.

-Dois mil reais custa uma consulta com a dona Fróida?! – fez Maria Felicitá toda espantada.

Mas Maria não podia esperar. Juntou uma televisão de led, um microsystem, um microondas, uma secretária eletrônica, um ‘mico-leão-dourado’ e um I-Pod G8 Três Vírgula Quatro Polegadas e Meia. E tudo ela vendeu para o muambeiro Tião Sorriso por mil e oitocentos reais. Tião Sorriso é muito esperto. E Maria muito besta.

-Não tenho medo de pechinchar, não – falou Maria para as paredes. –Dona Fróida vai me dar um desconto que eu sei; ninguém é bobo pra dispensar bufunfa assim.
E lá se foi Maria atrás da doutora Zigmunda.

II. A consulta com a Doutora Zigmunda Fróida

Na recepção da psiquiatra, Maria Felicitá sentou-se numa poltrona imitando um sapato de salto alto. Ela gostou e riu muito. E reparou num quadro na parede à sua frente.

“Santo deus! O que será aquele rabisco comprido que tem só um pezorro?!” – pensou Maria toda curiosa e pasmada. “Saci não é porque não tem gorro vermelho nem cachimbo na boca” – concluiu nos alegres miolos.

Maria não tinha aprendido nada sobre artes. Ela só tinha aprendido a rir de tudo. Nunca falaram do Abaporu para ela. E o retrato era mesmo o Abaporu, da Tarsila do Amaral, que foi casada com Oswald de Andrade, mas o casamento nem deu muito certo.
Nisso a secretária da doutora Fróida, a Zefinha Rabugenta, mandou Maria entrar na sala da psiquiatra porque era a vez dela. E Zigmunda não podia perder tempo.

-Acha! Tempo é dinheiro... ninguém tem tempo pra perder com gente alegrinha assim! – disse Zefinha toda desacreditada com a alegria de Maria.

E lá foi Maria de alegrinha ter com a grandessíssima entendedora de cabeças.

-Entre, darling – disse calmamente a doutora. –Deite-se no divã e vá logo desembuchando o que é que você tem, meu bem!

Maria obedeceu rapidamente porque se lembrou da essência das palavras de Zefinha Rabugenta: “Tempo é dinheiro e ninguém tem tempo pra perder com gente alegrinha assim”. Só ela, Maria, é que era toda feliz.

-Não tenho nada, não, dona Fróida!

-Não?! – espantou-se a doutora.

-Mas vim aqui pra ver se arranjo alguma coisa qualquer – emendou sem demora a moça que padecia de felicidade.

-Hum! Vejo que você é ajuizada, baby – disse satisfeita a psiquidoida.

-Mas só tenho mil e oitocentos reais... mais, eu não tenho, não!

-Oh, honey, não se preocupe! Sempre tenho uma coisinha ou outra que cabe direitinho no bolsinho de cliente brasileiro. Ah, se tenho!

E lá foi a doutora muita sabida na direção de uma estante repleta de tudo quanto era transtorno mental.

-Como é a sua primeira vez, litle girl, vamos devagar porque devagar se vai ao longe – advertiu a médica.

E falou isso coçando o queixo com a mão esquerda enquanto a mão direita tateava as prateleiras das delícias transtornativas.

De repente a psiquiatra fez: -Oh!!!

-Encontrou, doutora?! – perguntou Maria já toda imbuída só com a iminência de um transtorno que lhe entristecesse a alma e a incluísse na sociedade dos transtornados.

-Esquisiotepatia Tripolárica Sorumbática!!! – gritou com muita satisfação na voz a inventora de doidices.

-Que diabo é isso?! – quis saber Maria toda escalafobética.

-Um transtorno que criei já vai algum tempinho... só estava esperando a pessoa certa para prescrever.

-Eu, que sou toda errada, sirvo pra ser a pessoa certa, dona Zigmunda? – ressabiou-se Maria Felicitá no fazer da pergunta.

-Oh, of course que sim! – atestou a doctor que é da terra do Tio Sam e aprendeu a falar Português para escarafunchar com êxito as cacholas do Brasil.

E veio a prescrição:

-Um comprimido de manhã bem cedinho e um bem à noitinha, antes dos braços de Morfeu – e assegurou bem para Maria:

-Honeyzinha, não se preocupe com os efeitos colaterais dos primeiros quarenta dias do tratamento, que são alegria triplicada e sentimentos de amor exagerados.

-Ai, meu deus!!! Não corro o risco de morrer com tanta felicidade, dona Fróida?!

-Jamais, darling! Será só no começo… depois de quarenta dias, vocezinha sentirá uma tristeza e uma melancolia tão incomensuráveis que nunca mais se lembrará da menor alegria que possa existir neste mundo de gente desregulada pela felicidade.

-Oh, doutora Fróida, que alegria! Não é todo dia que se encontra uma especialista em sandices.

E Maria voltou para casa, lá no bairro do Pó-de-Mico, toda contentinha porque em breve seria tão esquisiopatética como toda aquela gente da revista de psiquiatria.

III. Morra, Maria, morra com Poesia!

Nos primeiros vinte dias de tratamento, a moça não se aguentava de tanto se rir. Se mijava toda de tanta ALEGRIA. No trigésimo dia, Maria estava insuportavelmente feliz. Achou até que MORRERIA.
“Pelo menos morro feliz”, matutou na cabecinha cheia de TONTERIA.
Quando completaram-se os quarenta dias de tratamento, a doida, no mais alto clímax de felicidade, já pedindo passarinho em namoro, disse para si mesma, com muita HISTERIA:
-Enfim, amanhã ficarei SO - RUM - BÁ - TI – CA!!!
Ficou nada.
Na madrugada do quadragésimo para o quadragésimo primeiro DIA, o coração de Maria explodiu de tanta EUFORIA.
Morreu com os olhinhos arregaladinhos e bem brilhantes. A boca parecia que tinha triplicado os dentes de Maria, de tanto que ela SORRIA.
A doutora Fróida soube do acontecido e foi consultar as bases. Tinha prescrito comprimido de “cannabis sativa” para Maria em vez de comprimido para Esquisiotepatia Tripolárica Sorumbática.
E foi assim que Maria Felicitá – que era toda ALEGRIA – morreu de overdose de tanto gozar de felicidade e sonhos de ORGIA.

Éd Brambilla. Conto. PARANOIA. 2016.

Registrado na Biblioteca Nacional do Rio de janeiro.

Conto premiado com o 3° lugar no “CONCURSO DE CONTOS UNIP 2017”, em 04/05/2017.

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