I.
Maria Felicitá quer ser 'normal'
Nesta
história o nome da cidade onde a trama se desenrola é Penápolis. É
que Penápolis vem de pena – creio eu. E pena é bom para fazer
cosquinha
na
barriga da gente porque rir é bom demais. E a risada frouxa da
cosquinha
é a melhor coisa do mundo porque é uma risada arrancada de
espontâneo.
No
bairro do Pó-de-Mico, em Penápolis, vive Maria Felicitá, que se ri
de cócegas, de tombo alheio, de gente que escorrega na casca de
banana, de gente peidorreira, de mico-leão-dourado que vive na
eminência do ‘acabou-se o que era doce’, de tudo a moça se
acaba de tanto se rir.
Maria
é pura alegria. Em velório ela costuma rir com vontade. Mas é uma
vontade cheia de responsabilidade: ela não ri do defunto. Isto é
que não. Maria tem medo de assombração; só
ri das situações estereotipadas de velório superficial onde
ninguém nem está aí com o morto. Quando o velório é sério,
Maria fica séria também.
Ocorre
que de um tempinho para cá Maria Felicitá vinha sentindo-se
meio
incomodada com tanta alegria. Ela andou lendo numa revista de
psiquiatria sobre transtornos obsessivos compulsivos, bipolaridade,
síndrome do pânico, depressão, ansiedade, aracnofobia, homofobia,
gatofobia, gentefobia,
tudofobia,
todos esses transtornos que sempre existiram e só puseram nomes
recentemente.
-Gente,
quanta gente transtornada! – disse transtornada com tanto
transtorno a alegre Maria para si mesma.
E
agora Maria Felicitá se pôs ressabiada pensando que é anormal.
Pior: enfiou na cabeça que sofre de exclusão
social transtornante.
Isto lá na maneira de pensar dela.
Num
domingo bem cedinho lá foi Maria na banca do Zé Debochado comprar o
novo número da tal revista que fala de psiquiatria e de todos esses
assuntos do mundo dos miolos. E tinha reportagem falando de uma
famosíssima psiquiatra, a doutora Zigmunda Fróida, especialista em
desenvolver todo tipo de transtorno já nomeado e até transtorno que
ninguém botou nome ainda. E a doutora era perita em desmiolices
e batizou tudo quanto foi transtorno pagão.
-Dois
mil reais custa uma consulta com a dona Fróida?! – fez Maria
Felicitá toda espantada.
Mas
Maria não podia esperar. Juntou uma televisão de led,
um microsystem,
um microondas,
uma secretária eletrônica, um ‘mico-leão-dourado’ e um I-Pod
G8 Três Vírgula Quatro Polegadas e Meia.
E tudo ela vendeu para o muambeiro Tião Sorriso por mil e oitocentos
reais. Tião Sorriso é muito esperto. E Maria muito besta.
-Não
tenho medo de pechinchar, não – falou Maria para as paredes. –Dona
Fróida vai me dar um desconto que eu sei; ninguém
é bobo pra dispensar bufunfa assim.
E
lá se foi Maria atrás da doutora Zigmunda.
II.
A consulta com a Doutora Zigmunda Fróida
Na
recepção da psiquiatra, Maria Felicitá sentou-se numa poltrona
imitando um sapato de salto alto. Ela gostou e riu muito. E reparou
num quadro na parede à sua frente.
“Santo
deus! O que será aquele rabisco comprido que tem só um pezorro?!”
– pensou Maria toda curiosa e pasmada. “Saci não é porque não
tem gorro vermelho nem cachimbo na boca” – concluiu nos alegres
miolos.
Maria
não tinha aprendido nada sobre artes. Ela só tinha aprendido a rir
de tudo. Nunca falaram do Abaporu para ela. E o retrato era mesmo o
Abaporu, da Tarsila do Amaral, que foi casada com Oswald de Andrade,
mas o casamento nem deu muito certo.
Nisso
a secretária da doutora Fróida, a Zefinha Rabugenta, mandou Maria
entrar na sala da psiquiatra porque era a vez dela. E Zigmunda não
podia perder tempo.
-Acha!
Tempo é dinheiro... ninguém
tem tempo pra perder com gente alegrinha assim! – disse Zefinha
toda desacreditada com a alegria de Maria.
E
lá foi Maria de alegrinha ter com a grandessíssima entendedora de
cabeças.
-Entre,
darling
– disse calmamente a doutora. –Deite-se no divã e vá logo
desembuchando o que é que você tem, meu bem!
Maria
obedeceu rapidamente porque se lembrou da essência das palavras de
Zefinha Rabugenta: “Tempo é dinheiro e ninguém tem tempo pra
perder com gente alegrinha assim”. Só ela, Maria, é que era
toda
feliz.
-Não
tenho nada, não, dona Fróida!
-Não?!
– espantou-se a doutora.
-Mas
vim aqui pra ver se arranjo alguma coisa qualquer – emendou sem
demora a moça que padecia de felicidade.
-Hum!
Vejo que você é ajuizada, baby
– disse satisfeita a psiquidoida.
-Mas
só tenho mil e oitocentos reais... mais, eu
não tenho, não!
-Oh,
honey,
não se preocupe! Sempre tenho uma coisinha ou outra que cabe
direitinho no bolsinho de cliente brasileiro. Ah, se tenho!
E
lá foi a doutora muita sabida na direção de uma estante repleta de
tudo quanto era transtorno mental.
-Como
é a sua primeira vez, litle
girl,
vamos devagar porque devagar se vai ao longe – advertiu a médica.
E
falou isso coçando o queixo com a mão esquerda enquanto a mão
direita tateava as prateleiras das delícias transtornativas.
De
repente a psiquiatra fez: -Oh!!!
-Encontrou,
doutora?! – perguntou Maria já toda imbuída só com a iminência
de um transtorno que lhe entristecesse a alma e a incluísse na
sociedade dos transtornados.
-Esquisiotepatia
Tripolárica Sorumbática!!!
– gritou com muita satisfação na voz a inventora de doidices.
-Que
diabo é isso?! – quis saber Maria toda escalafobética.
-Um
transtorno que criei já vai algum tempinho... só
estava esperando a pessoa certa para prescrever.
-Eu,
que sou toda errada, sirvo pra ser a pessoa certa, dona Zigmunda? –
ressabiou-se Maria Felicitá no fazer da pergunta.
-Oh,
of
course
que sim! – atestou a doctor
que é da terra do Tio
Sam
e aprendeu a falar Português para escarafunchar com êxito as
cacholas do Brasil.
E
veio a prescrição:
-Um
comprimido de manhã bem cedinho e um bem à noitinha, antes dos
braços de Morfeu – e assegurou bem para Maria:
-Honeyzinha,
não se preocupe com os efeitos colaterais dos primeiros quarenta
dias do tratamento, que são alegria triplicada e sentimentos de amor
exagerados.
-Ai,
meu deus!!! Não corro o
risco
de morrer com tanta felicidade, dona Fróida?!
-Jamais,
darling!
Será só no começo… depois
de quarenta dias, vocezinha
sentirá uma tristeza e uma melancolia tão incomensuráveis que
nunca mais se lembrará da menor alegria que possa existir neste
mundo de gente desregulada pela felicidade.
-Oh,
doutora Fróida, que alegria! Não é todo dia que se encontra uma
especialista em sandices.
E
Maria voltou para casa, lá no bairro do Pó-de-Mico, toda
contentinha porque em breve seria tão esquisiopatética
como toda aquela gente da revista de psiquiatria.
III.
Morra, Maria, morra com Poesia!
Nos
primeiros vinte dias de tratamento, a moça não se aguentava de
tanto se rir. Se mijava toda de tanta ALEGRIA. No trigésimo dia,
Maria estava insuportavelmente feliz. Achou até que MORRERIA.
“Pelo
menos morro feliz”, matutou na cabecinha
cheia de TONTERIA.
Quando
completaram-se os quarenta dias de tratamento, a doida, no mais alto
clímax de felicidade, já pedindo passarinho em namoro, disse para
si mesma, com muita HISTERIA:
-Enfim,
amanhã ficarei SO - RUM - BÁ - TI – CA!!!
Ficou
nada.
Na
madrugada do quadragésimo para o quadragésimo primeiro DIA, o
coração de Maria explodiu de tanta EUFORIA.
Morreu
com os olhinhos arregaladinhos e bem brilhantes. A boca parecia que
tinha triplicado os dentes de Maria, de tanto que ela SORRIA.
A
doutora Fróida soube do acontecido e foi consultar as bases. Tinha
prescrito comprimido de “cannabis sativa” para Maria em vez de
comprimido para Esquisiotepatia
Tripolárica Sorumbática.
E
foi assim que Maria Felicitá – que era toda ALEGRIA – morreu de
overdose de tanto gozar de felicidade e sonhos de ORGIA.
Éd
Brambilla. Conto. PARANOIA. 2016.
Registrado na Biblioteca Nacional do Rio de janeiro.
Conto
premiado com o 3° lugar no “CONCURSO DE CONTOS UNIP 2017”, em
04/05/2017.
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