ALMa RaBiScAdA

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

O INFERNO É MAIS NO FUNDO


INTRODUÇÃO (Call Release):

                                   “Existe um inferno na Terra...
                        Muitos vão parar lá por diversos motivos...
                        E quando essas pessoas saem desse lugar,
                             carregam na alma uma espécie de
                         MARCA SOCIAL REGISTRADA...
             São homens e mulheres que adquirem um mesmo rosto,
       uma mesma história, um mesmo significado... um mesmo nome...
                                         Qualquer nome!
 No SISTEMA CARCERÁRIO, o INFERNO É MAIS NO FUNDO.”


O INFERNO É MAIS NO FUNDO

Texto baseado numa conversa real com um ex-presidiário; homem com bom vocabulário.

Cenário: Homem e Entrevistadora numa mesinha de bar; homem bebendo e fumando o tempo todo.

Homem sentado à mesa – bebendo e fumando – à espera da Entrevistadora, que se senta à mesa depois de fazer a introdução conceitual (cabeçalho acima), objeto da entrevista.

Homem e Entrevistadora já posicionados à mesa. Ambos com semblantes sérios e desconfiados. Inicia-se a entrevista:


Entrevistadora: -Por que você foi parar no inferno?

(breve silêncio)

Homem: -Eu tinha três bocas pra sustentar... E nem incluo a minha na conta... Você sabe o que é isso, moça? Você têm marido e filhos?
        
(breve pausa para um trago no cigarro)  

...Você até pode dizer coisas do tipo “trabalho honesto”, “pedir ajuda na Assistência Social” ou “recorrer a amigos”... Eu tentei, moça!... Juro que tentei... Mas eu não tive tempo pra “blá blá blá”... Eram três bocas reclamando...

(mais um trago no cigarro)

Entrevistadora: E qual foi a sua alternativa?

Homem: -Entrei no primeiro supermercado que vi... Peguei o que precisava... Não vou mentir pra senhora, que não sou dessa laia de mentirosos que existe em todo lugar... No meio do que “de comer” tinha uma garrafa de uísque, também... Um homem, às vezes, precisa de um consolo mais requintado...

(mais um trago no cigarro)

Entrevistadora: O que foi que deu errado?
         
Homem: -A “piranhazinha” lá do caixa me sacaneou... Mandei ela ficar “pianinha” enquanto eu mostrava um 38 de brinquedo pra ela... A vadia acionou um alarme embaixo do caixa... Duas horas depois eu já estava todo ferrado...

(mais um trago no cigarro, com olhos lacrimejando)

Entrevistadora: Para onde te levaram?

Homem: -Lá no inferno que me enfiaram mal tinha lugar pra quatro... Contei mais de vinte na cela... Passei uma semana dormindo agachado debaixo de uma goteira... Só depois é que resolveram meu caso... E foi à revelia...

Entrevistadora: -E depois?

Homem: -Me enfiaram pela segunda vez no “chiqueirinho” do camburão... E dessa vez demorou bem mais que a primeira vez pra eu chegar num inferno ainda maior, dona...

(breve silêncio)

...Onde eu fiquei uma semana era só o purgatório... O inferno é mais no fundo...

(soco na mesinha do bar)

Entrevistadora: -Quer continuar?

Homem: -Lá, moça... Você tem conhecimento que eu sei... Lá, você não sobreviveria... Tive de aprender a dissimular... Ninguém é culpado de nada no inferno maior... A culpa é sempre dos de fora... Toda gente presa, no fundo, é tudo vítima dessa merda de sistema... Tudo começa lá na molecagem, entende? Não vou ficar falando do percurso porque você entende dessas coisas melhor do que eu...

(trago no cigarro)

Entrevistadora: -Respire fundo... Continue quando puder...

Homem: -Só deixei de ser “soldadinho do governo” depois de seis meses comendo pão com banana... E só saí porque tive alguém por mim aqui do lado de fora... Mas não pensa você que tem sido fácil, não! Carrego uma tatuagem estampada... E não é no corpo não, moça... É na minha “ficha”... Faz tempo que vivo de “bicos”... Não me dão emprego fixo... E tudo são desculpas... Mas eu sei que “puxam” a minha “ficha”...

(trago no cigarro)

Homem: -Mas a gente tem de viver, não é mesmo? Então eu vivo do que me oferecem... Não acho isso vergonha...

(breve silêncio)

...Vergonha eu sinto quando olho pra minha mãe, que me criou sozinha... Pra minha avó, que fez o que pôde por mim... Do meu casamento nem falo, esse foi pro “brejo”... Mas hoje eu ensino meus filhos através do amor... Através da dor já basta a que eu carreguei e vou carregar pra sempre...

(breve silêncio)         

Entrevistadora: -Gostaria de acrescentar mais algum fato?    

Homem: -Não, moça! Não tenho mais nada pra contar... Tenho um “bico” pra fazer ainda hoje...

Homem (levanta-se da cadeira, toma o último gole de cerveja e despede-se da entrevistadora): -Fica na fé, irmã... Depois me fala se a minha história te serviu pra alguma coisa...

(Homem dá de costas e vai embora)

Entrevistadora (dirige-se à plateia e esclarece): -O entrevistado pediu para não ter seu nome citado... Nem mesmo aceitou um nome fictício... Apenas a história, que, nas palavras dele:

“É igual a de milhares por esse mundo afora, moça...”


ENTREVISTA ENCERRADA


Expressão “soldadinho do governo”: o homem refere-se ao fato de ter usado um uniforme amarelo durante os seis meses no presídio.


Éd Brambilla. O INFERNO É MAIS NO FUNDO. Entrevista. 02/12/2015.

Nenhum comentário: