INTRODUÇÃO
(Call Release):
“Existe
um inferno na Terra...
Muitos
vão parar lá por diversos motivos...
E quando essas pessoas saem desse lugar,
carregam na alma uma espécie de
MARCA SOCIAL REGISTRADA...
São homens e mulheres que adquirem um mesmo
rosto,
uma mesma história, um mesmo significado...
um mesmo nome...
Qualquer nome!
No SISTEMA CARCERÁRIO, o
INFERNO É MAIS NO FUNDO.”
|
O
INFERNO É MAIS NO FUNDO
Texto baseado numa
conversa real com um ex-presidiário; homem com bom vocabulário.
Cenário:
Homem e Entrevistadora numa mesinha de bar; homem bebendo e fumando o tempo
todo.
Homem sentado à mesa –
bebendo e fumando – à espera da Entrevistadora, que se senta à mesa depois de
fazer a introdução conceitual (cabeçalho acima), objeto da entrevista.
Homem e Entrevistadora já
posicionados à mesa. Ambos com semblantes sérios e desconfiados. Inicia-se a
entrevista:
Entrevistadora: -Por
que você foi parar no inferno?
(breve silêncio)
Homem: -Eu tinha
três bocas pra sustentar... E nem incluo a minha na conta... Você sabe o que é
isso, moça? Você têm marido e filhos?
(breve pausa para um
trago no cigarro)
...Você até pode dizer
coisas do tipo “trabalho honesto”, “pedir ajuda na Assistência Social” ou
“recorrer a amigos”... Eu tentei, moça!... Juro que tentei... Mas eu não tive
tempo pra “blá blá blá”... Eram três bocas reclamando...
(mais um trago no cigarro)
Entrevistadora:
E qual foi a sua alternativa?
Homem: -Entrei no
primeiro supermercado que vi... Peguei o que precisava... Não vou mentir pra
senhora, que não sou dessa laia de mentirosos que existe em todo lugar... No
meio do que “de comer” tinha uma garrafa de uísque, também... Um homem, às
vezes, precisa de um consolo mais requintado...
(mais um trago no
cigarro)
Entrevistadora: O
que foi que deu errado?
Homem: -A
“piranhazinha” lá do caixa me sacaneou... Mandei ela ficar “pianinha” enquanto
eu mostrava um 38 de brinquedo pra ela... A vadia acionou um alarme embaixo do
caixa... Duas horas depois eu já estava todo ferrado...
(mais um trago no
cigarro, com olhos lacrimejando)
Entrevistadora:
Para onde te levaram?
Homem: -Lá no
inferno que me enfiaram mal tinha lugar pra quatro... Contei mais de vinte na
cela... Passei uma semana dormindo agachado debaixo de uma goteira... Só depois
é que resolveram meu caso... E foi à revelia...
Entrevistadora:
-E depois?
Homem:
-Me enfiaram pela segunda vez no “chiqueirinho” do camburão... E dessa vez
demorou bem mais que a primeira vez pra eu chegar num inferno ainda maior, dona...
(breve silêncio)
(breve silêncio)
...Onde eu fiquei uma
semana era só o purgatório... O inferno é mais no fundo...
(soco na mesinha do
bar)
Entrevistadora:
-Quer continuar?
Homem: -Lá,
moça... Você tem conhecimento que eu sei... Lá, você não sobreviveria... Tive
de aprender a dissimular... Ninguém é culpado de nada no inferno maior... A
culpa é sempre dos de fora... Toda gente presa, no fundo, é tudo vítima dessa
merda de sistema... Tudo começa lá na molecagem, entende? Não vou ficar falando
do percurso porque você entende dessas coisas melhor do que eu...
(trago no cigarro)
Entrevistadora:
-Respire fundo... Continue quando puder...
Homem: -Só
deixei de ser “soldadinho do governo” depois de seis meses comendo pão com
banana... E só saí porque tive alguém por mim aqui do lado de fora... Mas não
pensa você que tem sido fácil, não! Carrego uma tatuagem estampada... E não é no
corpo não, moça... É na minha “ficha”... Faz tempo que vivo de “bicos”... Não
me dão emprego fixo... E tudo são desculpas... Mas eu sei que “puxam” a minha
“ficha”...
(trago
no cigarro)
Homem: -Mas a
gente tem de viver, não é mesmo? Então eu vivo do que me oferecem... Não acho
isso vergonha...
(breve silêncio)
...Vergonha eu sinto
quando olho pra minha mãe, que me criou sozinha... Pra minha avó, que fez o que
pôde por mim... Do meu casamento nem falo, esse foi pro “brejo”... Mas hoje eu
ensino meus filhos através do amor... Através da dor já basta a que eu
carreguei e vou carregar pra sempre...
(breve silêncio)
Entrevistadora:
-Gostaria de acrescentar mais algum fato?
Homem: -Não,
moça! Não tenho mais nada pra contar... Tenho um “bico” pra fazer ainda hoje...
Homem
(levanta-se da cadeira, toma o último gole de cerveja e despede-se da
entrevistadora): -Fica na fé, irmã... Depois me fala se a minha história te
serviu pra alguma coisa...
(Homem dá de costas
e vai embora)
Entrevistadora (dirige-se
à plateia e esclarece): -O entrevistado pediu para não ter seu nome citado... Nem
mesmo aceitou um nome fictício... Apenas a história, que, nas palavras dele:
“É
igual a de milhares por esse mundo afora, moça...”
ENTREVISTA
ENCERRADA
Expressão
“soldadinho do governo”: o homem refere-se ao fato de ter
usado um uniforme amarelo durante os seis meses no presídio.
Éd
Brambilla. O INFERNO É MAIS NO FUNDO. Entrevista. 02/12/2015.
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