Entender
Clarice? Não, é pouco. Clarice é de se sentir. É de entregar-se à ela, e por
ela, sem reservas. E receber de volta quase tudo de si e de si mesmo: a troca
que é feita por pura reciprocidade de amor. Sim, quase tudo! Porque no quase
estão nossas reservas, o secreto que habita dentro de cada um. Há que se
respeitar esta pequena fração, a folha de parreira que nos foi dada como
guardiã do nosso melhor, que, indubitavelmente, é o próprio sopro de vida, para
que a alma não esteja de toda desnuda. Meu amor por Clarice, por vezes, é
horizontal e geométrico. É quando disponho todas as suas obras – coisa concreta
- uma ao lado da outra, e obtenho um grande quadrado. Então me sento a certa
distância deste meu tabuleiro de grandes segredos escondidos por trás de capas,
e contemplo o horizonte de tons sobre tons, de pontos de interrogação e de
exclamação, e de morte e vida, que se pedem e se completam. Meu semblante,
respeitosamente emudecido, cai em pura prece; e as lágrimas, em minha face
tomada pela resignação, escorrem em pequeno e lento riacho, e despeja em seu
fino leito memórias do que se foi. Então aceito! E compreendo: a vida se faz
agora, neste instante; o que aconteceu antes da última respiração já não tem a
menor importância, é matéria morta. E compreendo mais além: viver é para cada
um, é uma responsabilidade solitária; o que está fora da carne - o que é
palpável - não alcança a alma, apenas o sentimento é absorvido. E descubro:
preciso amar para ganhar amor; preciso ser generoso para ganhar generosidade. É
tudo tão óbvio. É preciso sentir, e trocar, e absorver. Só assim se ganha o
direito à plenitude; só assim o que é humano em mim se glorifica, porque já não
terei mais medo da solidão; porque compreender a mim mesmo é a missão que me
foi legada. E concluo: agora posso dar amor, generosidade, bondade, porque
descobri a fonte. E descobri também a forma de fazê-la abundante em mim. Minha
fonte voltou a jorrar, e agora me dei conta de tudo que ainda há por fazer. Só
me dei conta porque a fonte se revitalizou. E de repente volta-me a consciência
do tabuleiro lispectoriano.
Abro os olhos e fixo-os em direção ao centro do quadrado. E questiono: então é
assim que se dá o sentimento de aleluia, oh, Mestra Clarice? E respondo-me:
sim, é assim mesmo. E alerto: o sentimento de aleluia é único para cada um; um
jamais será igual ao outro. Então me liberto: Aleluia, Clarice! Aleluia! Também
poderia ser Haia, Clarice! Haia!
Éd
Brambilla. Crônica. POR AMOR A CLARICE LISPECTOR. 03/02/2013.
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