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segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O ABSTRATO DA FATALIDADE EM QUATRO ATOS




Um:

Não tenho como falar das horas, o que conto agora é atemporal. Trata-se de um leve torpor que senti na alma e, daí, uma vontade visceral de matar. Mas não matar por crueldade, matar por necessidade. Sendo assim e, por pura necessidade, provoco, a seguir, algumas mortes: Maria Flor em nada fazia jus a seu nome, era feia e desengonçada. Tinha os cabelos desgrenhados e a pele suja de nascença, como um castigo por coisa mal feita. Para completar sua desgraça, era míope. Alguém disse a pobre coitada que procurasse um desses salões de beleza para que dessem jeito em sua falta de graça. Que brincadeira de mau gosto essa! Jamais Maria Flor seria bonita. O fato é que ela acreditara na mentira, estava tão feliz com a possibilidade de ser menos feia que não olhou o sinal ao atravessar a avenida. O estrondo só não foi maior por conta de sua falta de carne, era seca como um galho de inverno. E, ali, destroçada, no meio-fio, o sangue que lhe cobria o rosto e o corpo, sordidamente lhe dava um ar de plenitude. A rubra mortalha que lhe estampava toda neste momento fora a única prova de amor que Maria Flor recebera em toda a sua vida. Sangue também representa a vida, portanto, há de ser amor. Que Deus a tenha!

Dois:

Ainda não matei o suficiente, preciso sossegar o que me causa tormenta: João de Deus, cansado de carregar o peso do que é divino em seu nome, decidiu rebelar-se. É que João passara a vida policiando-se todo para não macular o nome que recebeu da já falecida mãe. Num rompante de fúria disparou: “Desgraçada! Mil vezes desgraçada! Perpetuou em mim a mais difícil das virtudes: a benevolência.” Eis que a obrigação de ser somente bom começou a machucar-lhe a alma. Tudo o que é humano deve ser dosado também com o que é mal. E João precisava de uma mancha grossa que lhe tirasse a suavidade: “É isso, um assalto!” E Armou-se de um trinta e oito e pôs-se a caminhar em direção ao posto de gasolina que ficava em uma esquina próxima de sua casa. E como nem tudo se veste de sorte, havia um policial a paisana no local. A bala que atravessara o coração de João foi mais que um tiro de morte, foi um batismo com a mais pura corrupção. O cheiro seco da pólvora e o gosto picante do metal banharam-lhe com sua mais pura essência: a de um ladrão. Ele, que sustentou por tanto tempo o que não lhe cabia, morreu com o mais secreto de si. Estava batizado. Que Deus o tenha!

Três:

Vou contar neste parágrafo sobre uma morte provocada por conta da mais pura ingenuidade: o caso é que sei de um rapaz que, quando criança, disseram-lhe que o gato possuía sete vidas. "Será?' A verdade é que toda a maldade que havia na infância do menino era fruto da insensatez dos adultos. Davam-lhe o texto e ele que buscasse a explicação. E tudo o menino colocava à prova. Chamou o gato usando o som que se usa para chamar gatos. Era um gato pequenino, veio rápido. Deve ter pensado que era para brincar. Mas não o era, a ciência falava mais alto naquele momento. Pegou o pobrezinho pelo pescoço, mergulhou-o no tanque d’ água e contou calmamente até dez. Fez o mesmo procedimento mais cinco vezes, poupando-lhe a sétima vida. "Sete vidas?" O bichano já estava morto desde o terceiro mergulho. Que Deus o tenha!

Quatro:

Mato agora por pura maldade mesmo, é que passei tempo demais sendo bom: vi quando a borboleta pousou na janela de minha sala. Era de um azul esfuziante. Parecia mais uma pintura de Claude Monet, tamanha era a luz emanada do inseto lepidóptero. Em meio ao encantamento, meu coração gelou. Lembrei-me de uma amiga que sofre de um medo terrível de borboletas. Ela seria capaz de matar só para ficar longe desse mal. E saibam que é extremamente importante dizer que essa amiga é de um coração muito generoso com tudo, menos com borboletas. Não pensei mais que duas vezes, espalmei a mão direita na janela. Tudo o que sobrou da pobrezinha foi um colorido azul que demorou a sair da mão. Foi vingança por amizade. Pobre borboleta azul. Que Deus a tenha!

Conclusão:

Quem nunca sentiu vontade de matar, eu digo: É mentira! Há momentos na vida em que matar lava a alma. Que seja a morte de um relacionamento doente, de um emprego sem perspectivas, de uma amizade que agride, enfim, ás vezes há que se ter coragem para transgredir as regras se o resultado final for a verdadeira liberdade.

Conselho: 

Pegue caneta e papel, crie suas próprias vítimas e mate com devoção, porém, tenha cautela.



Éd Brambilla. Crônica. O ABSTRATO DA FATALIDADE EM QUATRO ATOS. 19/09/2011.

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