Um:
Não tenho como falar das horas, o que conto agora é atemporal. Trata-se
de um leve torpor que senti na alma e, daí, uma vontade visceral de matar. Mas
não matar por crueldade, matar por necessidade. Sendo assim e, por pura
necessidade, provoco, a seguir, algumas mortes: Maria Flor em nada fazia jus a
seu nome, era feia e desengonçada. Tinha os cabelos desgrenhados e a pele suja
de nascença, como um castigo por coisa mal feita. Para completar sua desgraça,
era míope. Alguém disse a pobre coitada que procurasse um desses salões de
beleza para que dessem jeito em sua falta de graça. Que brincadeira de mau
gosto essa! Jamais Maria Flor seria bonita. O fato é que ela acreditara na
mentira, estava tão feliz com a possibilidade de ser menos feia que não olhou o
sinal ao atravessar a avenida. O estrondo só não foi maior por conta de sua
falta de carne, era seca como um galho de inverno. E, ali, destroçada, no
meio-fio, o sangue que lhe cobria o rosto e o corpo, sordidamente lhe dava um
ar de plenitude. A rubra mortalha que lhe estampava toda neste momento fora a
única prova de amor que Maria Flor recebera em toda a sua vida. Sangue também
representa a vida, portanto, há de ser amor. Que Deus a tenha!
Dois:
Ainda não matei o suficiente, preciso sossegar o que me causa tormenta:
João de Deus, cansado de carregar o peso do que é divino em seu nome, decidiu
rebelar-se. É que João passara a vida policiando-se todo para não macular o
nome que recebeu da já falecida mãe. Num rompante de fúria disparou:
“Desgraçada! Mil vezes desgraçada! Perpetuou em mim a mais difícil das
virtudes: a benevolência.” Eis que a obrigação de ser somente bom começou a
machucar-lhe a alma. Tudo o que é humano deve ser dosado também com o que é
mal. E João precisava de uma mancha grossa que lhe tirasse a suavidade: “É
isso, um assalto!” E Armou-se de um trinta e oito e pôs-se a caminhar em
direção ao posto de gasolina que ficava em uma esquina próxima de sua casa. E
como nem tudo se veste de sorte, havia um policial a paisana no local. A bala
que atravessara o coração de João foi mais que um tiro de morte, foi um batismo
com a mais pura corrupção. O cheiro seco da pólvora e o gosto picante do metal
banharam-lhe com sua mais pura essência: a de um ladrão. Ele, que sustentou por
tanto tempo o que não lhe cabia, morreu com o mais secreto de si. Estava
batizado. Que Deus o tenha!
Três:
Vou contar neste parágrafo sobre uma morte provocada por conta da mais
pura ingenuidade: o caso é que sei de um rapaz que, quando criança,
disseram-lhe que o gato possuía sete vidas. "Será?' A verdade é que toda a
maldade que havia na infância do menino era fruto da insensatez dos adultos.
Davam-lhe o texto e ele que buscasse a explicação. E tudo o menino colocava à
prova. Chamou o gato usando o som que se usa para chamar gatos. Era um gato
pequenino, veio rápido. Deve ter pensado que era para brincar. Mas não o era, a
ciência falava mais alto naquele momento. Pegou o pobrezinho pelo pescoço,
mergulhou-o no tanque d’ água e contou calmamente até dez. Fez o mesmo
procedimento mais cinco vezes, poupando-lhe a sétima vida. "Sete
vidas?" O bichano já estava morto desde o terceiro mergulho. Que Deus o
tenha!
Quatro:
Mato agora por pura maldade mesmo, é que passei tempo demais sendo bom:
vi quando a borboleta pousou na janela de minha sala. Era de um azul
esfuziante. Parecia mais uma pintura de Claude Monet, tamanha era a luz emanada
do inseto lepidóptero. Em meio ao encantamento, meu coração gelou. Lembrei-me
de uma amiga que sofre de um medo terrível de borboletas. Ela seria capaz de
matar só para ficar longe desse mal. E saibam que é extremamente importante
dizer que essa amiga é de um coração muito generoso com tudo, menos com
borboletas. Não pensei mais que duas vezes, espalmei a mão direita na janela.
Tudo o que sobrou da pobrezinha foi um colorido azul que demorou a sair da mão.
Foi vingança por amizade. Pobre borboleta azul. Que Deus a tenha!
Conclusão:
Quem nunca sentiu vontade de matar, eu digo: É mentira! Há momentos na
vida em que matar lava a alma. Que seja a morte de um relacionamento doente, de
um emprego sem perspectivas, de uma amizade que agride, enfim, ás vezes há que
se ter coragem para transgredir as regras se o resultado final for a verdadeira
liberdade.
Conselho:
Pegue caneta e papel, crie suas próprias vítimas e mate com devoção,
porém, tenha cautela.
Éd Brambilla. Crônica. O ABSTRATO DA FATALIDADE EM QUATRO ATOS. 19/09/2011.
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